Lembro-me de ter escrito, há alguns meses, uma crônica chamada “Os dois Brasis”, em que falava a respeito do ranking das melhores e piores escolas do país, este último, ocupado em massa pelo ensino público. Lembro-me também de ter escrito, no fim do texto, que esperava um dia poder fundir esses dois Brasis em um só. E esse dia chegou! Só não imaginava que fosse ser tão rápido! Pois, certamente, o que assistimos hoje, no Rio de Janeiro, é o choque entre esses dois países: de um lado, o Estado oficial; do outro, o poder paralelo. E, no meio, centenas de pessoas inocentes, as verdadeiras vítimas do aparato de guerra, montado nos pés da Vila Cruzeiro e demais comunidades ligadas ao narcotráfico. Brasil oficial é recebido assim: a bala, por quem dele jamais precisou.
É sabido que, historicamente, pobreza, no Brasil, sempre foi caso de polícia, e não de política. Como em uma conspiração inteligentemente arquitetada durante os nossos 500 anos de história, as “elites”, como são genericamente chamados aqueles que se sucedem no poder, sempre preferiram a “patuleia ignóbil”, a massa de manobra cordata, doente, faminta, iletrada. É muito mais fácil domar gado assim. É o que Claudio de Moura Castro, na edição 2191 da revista Veja chamou de “Cortina de Burrice”: garantia de isolamento do mundo com uma educação de péssima qualidade e, vou até um pouco mais além, conspirando para a espiral do fracasso, de norte a sul em nosso país, na reprodução das mazelas em outros campos do tecido social.
O que tais “elites”, no entanto, não perceberam é que, isolados e jogados à míngua, esses grupos de pessoas criaram sua própria ética, no sentido estrito do termo. Onde o Brasil oficial não avançou, o poder paralelo criou leis, tribunais, códigos morais e tantos outros aparatos de substituição do Estado. Certamente, na mente de muitos ali, deve ser incompreensível a presença desse Leviatã que, de uma hora para outra, resolveu se apoderar do “pedaço deles”. Como em um verdadeiro (e lucrativo) negócio, os líderes do chamado crime organizado simplesmente viram um gap de mercado, sem nem mesmo precisar de uma faculdade em administração e ali se instauraram. A lógica é tão simples que chega a ser desconcertante. O que impressiona é por que as autoridades deixaram a coisa tomar tamanha proporção ao longo dos anos?
A investida nos morros com blindados, helicópteros, soldados e outros aparatos bélicos deveria ser motivo de vergonha e não de alegria. Quero dizer, não que não se deva agir repressivamente. O contentamento das populações locais comove. Fico imaginando famílias inteiras privadas do direito mais que natural de ir para a varanda de suas casas; ou mesmo, de abrir uma janela, dentre tantas outras coisas. Mas, chegar a esse ponto demonstra o descaso de séculos de história para com a população brasileira, num país que teima em não se enxergar como nação, privilegiando alguns em detrimento a outros. O que acontece no Rio, a meu ver, é o microcosmo do que pode, certamente, acontecer em outros locais do país. É a História cobrando um preço muito alto a todos nós...
A fusão dos dois Brasis se faz urgente e irreversível. O problema todo é a repartição de privilégios. Ninguém quer perder seu quinhão. Contudo, não há outra maneira de fazê-lo. Muito se fala em Nova York ou Medelín e como essas cidades coibiram seu problema endêmico de violência. Uma das saídas foi a educação; outra, o emprego. A repressão foi apenas o começo, a saída imediata. O grande problema é que nós brasileiros somos os reis do imediatismo. Acho que finalmente chegamos a um “impasse histórico”: ou quebramos o paradigma de séculos ou teremos o desprazer de ter cenas como essas como uma constante, pois, se nada além for feito, de onde esses saíram, certamente, sairão mais. Recebido a bala, o Brasil Oficial, finalmente, tenta se impor em locais onde antes não havia chegado. Espero que o motivo seja mais que Copa ou Olimpíada. Apesar de tudo, enquanto brasileiro, guardo uma ponta de otimismo. Em todo caso, não dá mais para conviver com dois Brasis tão díspares. Definitivamente.
Anaximandro Amorim,
Escritor, membro da Academia Espírito-Santense de Letras.
(cadeira 40)