sábado, 27 de novembro de 2010

O CHOQUE ENTRE OS DOIS BRASIS

Lembro-me de ter escrito, há alguns meses, uma crônica chamada “Os dois Brasis”, em que falava a respeito do ranking das melhores e piores escolas do país, este último, ocupado em massa pelo ensino público. Lembro-me também de ter escrito, no fim do texto, que esperava um dia poder fundir esses dois Brasis em um só. E esse dia chegou! Só não imaginava que fosse ser tão rápido! Pois, certamente, o que assistimos hoje, no Rio de Janeiro, é o choque entre esses dois países: de um lado, o Estado oficial; do outro, o poder paralelo. E, no meio, centenas de pessoas inocentes, as verdadeiras vítimas do aparato de guerra, montado nos pés da Vila Cruzeiro e demais comunidades ligadas ao narcotráfico. Brasil oficial é recebido assim: a bala, por quem dele jamais precisou.

É sabido que, historicamente, pobreza, no Brasil, sempre foi caso de polícia, e não de política. Como em uma conspiração inteligentemente arquitetada durante os nossos 500 anos de história, as “elites”, como são genericamente chamados aqueles que se sucedem no poder, sempre preferiram a “patuleia ignóbil”, a massa de manobra cordata, doente, faminta, iletrada. É muito mais fácil domar gado assim. É o que Claudio de Moura Castro, na edição 2191 da revista Veja chamou de “Cortina de Burrice”: garantia de isolamento do mundo com uma educação de péssima qualidade e, vou até um pouco mais além, conspirando para a espiral do fracasso, de norte a sul em nosso país, na reprodução das mazelas em outros campos do tecido social.

O que tais “elites”, no entanto, não perceberam é que, isolados e jogados à míngua, esses grupos de pessoas criaram sua própria ética, no sentido estrito do termo. Onde o Brasil oficial não avançou, o poder paralelo criou leis, tribunais, códigos morais e tantos outros aparatos de substituição do Estado. Certamente, na mente de muitos ali, deve ser incompreensível a presença desse Leviatã que, de uma hora para outra, resolveu se apoderar do “pedaço deles”. Como em um verdadeiro (e lucrativo) negócio, os líderes do chamado crime organizado simplesmente viram um gap de mercado, sem nem mesmo precisar de uma faculdade em administração e ali se instauraram. A lógica é tão simples que chega a ser desconcertante. O que impressiona é por que as autoridades deixaram a coisa tomar tamanha proporção ao longo dos anos?

A investida nos morros com blindados, helicópteros, soldados e outros aparatos bélicos deveria ser motivo de vergonha e não de alegria. Quero dizer, não que não se deva agir repressivamente. O contentamento das populações locais comove. Fico imaginando famílias inteiras privadas do direito mais que natural de ir para a varanda de suas casas; ou mesmo, de abrir uma janela, dentre tantas outras coisas. Mas, chegar a esse ponto demonstra o descaso de séculos de história para com a população brasileira, num país que teima em não se enxergar como nação, privilegiando alguns em detrimento a outros. O que acontece no Rio, a meu ver, é o microcosmo do que pode, certamente, acontecer em outros locais do país. É a História cobrando um preço muito alto a todos nós...

A fusão dos dois Brasis se faz urgente e irreversível. O problema todo é a repartição de privilégios. Ninguém quer perder seu quinhão. Contudo, não há outra maneira de fazê-lo. Muito se fala em Nova York ou Medelín e como essas cidades coibiram seu problema endêmico de violência. Uma das saídas foi a educação; outra, o emprego. A repressão foi apenas o começo, a saída imediata. O grande problema é que nós brasileiros somos os reis do imediatismo. Acho que finalmente chegamos a um “impasse histórico”: ou quebramos o paradigma de séculos ou teremos o desprazer de ter cenas como essas como uma constante, pois, se nada além for feito, de onde esses saíram, certamente, sairão mais. Recebido a bala, o Brasil Oficial, finalmente, tenta se impor em locais onde antes não havia chegado. Espero que o motivo seja mais que Copa ou Olimpíada. Apesar de tudo, enquanto brasileiro, guardo uma ponta de otimismo. Em todo caso, não dá mais para conviver com dois Brasis tão díspares. Definitivamente.

Anaximandro Amorim,
Escritor, membro da Academia Espírito-Santense de Letras.
(cadeira 40)

domingo, 14 de novembro de 2010

ESTÁ TODO MUNDO FICANDO GORDO

Li uma notícia na internet que me deixou estarrecido: o Brasil já conta com uma verdadeira epidemia de obesidade, do Oiapoque ao Chuí. Fiquei impressionado com a notícia, mas também com a palavra. Epidemia. É muito forte, essa palavra. Epidemia de gripe, epidemia de Aids, epidemia de um monte de coisa... mas de obesidade? Achei a palavra, no contexto, no mínimo, inusitada! Epidemia... parece que, agora, se alguém vir um gordo na rua, deve sair correndo, com medo de ficar assim também... do jeito que a coisa anda, só de ficar perto de um, a gente vai pegar obesidade.

Brincadeiras à parte, a coisa é séria: números de organismos do Departamento de Saúde dos Estados Unidos da América indicam que aproximadamente 60% da população daquele país sofre com excesso de peso ou é obesa. É um marca inacreditável! O Brasil, infelizmente, vai no mesmo caminho: pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que em todas as regiões do país, em todas as faixas etárias e em todas as faixas de renda aumentou o percentual de pessoas com excesso de peso. O sobrepeso atinge mais de 30% das crianças entre 5 e 9 anos de idade, cerca de 20% da população entre 10 e 19 anos e nada menos que 48% das mulheres e 50,1% dos homens acima de 20 anos. Entre os 20% mais ricos, o excesso de peso chega a 61,8% na população de mais de 20 anos. Também nesse grupo concentra-se o maior percentual de obesos: 16,9%. É surpreendente!

Isso significa: está todo mundo ficando gordo! E isso é visível. Eu já cruzo com pessoas na rua que, se não vierem falar comigo, não consigo reconhecer mais. Aconteceu esses dias, mesmo! Se uma ex-colega não tivesse me abordado, teria passado ao lado dela, sem dar a mínima de atenção. Ela era magrela, magrela... como era um amigo meu também, mas o estado dele, hoje... até eu mesmo, quem diria, também começo a dar sinais de briga com a balança. Lembro-me que, até a época da faculdade, podia contar minhas costelas. Comia o que quisesse. Hoje, já preciso conjugar um verbo que até algum tempo me dava arrepios: emagrecer. Isso se não quiser fazer parte das estatísticas! Nunca pensei que tivesse de passar um tempão na esteira, suando. Odiava fazer isso. Em resumo: até eu estou ficando gordo...

Não sei de quem é a culpa disso. Do governo, que permite cantinas escolares com salgadinhos, refrigerantes, ao invés de frutas, por exemplo? Dos pais, que não têm tempo de criar seus filhos e, assim, deixam as crianças comerem o que quiserem? Da mídia, que nos bombardeia com belíssimas propagandas de junk food, o tempo todo? Talvez um pouco de tudo. Mas, convenhamos: comer é bom demais, não é? Chocolate ao leite ou meio amargo ou com nozes e avelãs; picanha com aquela capinha de gordura e um sanguinho escorrendo e um belo torresminho ou um pote de batata frita, salgadinha e crocante ou um tropeirinho; pizza de presunto, portuguesa, frango com catupiry, com bastante azeitona e ketchup, mostarda ou maionese, para dar um sabor especial; hambúrguer com coca-cola bem gelada... quem é que resiste a esse tipo de coisa?

O pior é que não há para onde correr: ouvi uma entrevista de uma nutricionista no rádio e até mesmo aquilo que eu – e todo mundo – considerava saudável faz mal a saúde: diet e light não é tudo a mesma coisa e um contém açúcar e outro o mesmo nível de calorias; barra de cereal, já disseram, pode dar até câncer; as frutas que a gente compra no supermercado estão recheadas de agrotóxicos; os alimentos “naturais”, uma vez ensacados, podem perder suas qualidades e transformar-se em grandes vilões da alimentação; ração humana não tem capacidade nenhuma comprovada; e até mesmo a carne branca vem de animais infestados de hormônios que podem atingir a gente! A conversa foi tão terrível que um ouvinte pensou e falou aquilo que eu gostaria de ter tido coragem de perguntar: “mas doutora, será que a gente não pode comer nada, então?”

É por isso que, a partir de agora, eu quero lançar um manifesto, o “Manifesto em Prol da Fotossíntese Humana”. Isso mesmo! Vamos todos, de agora para frente, fazer fotossíntese! Você já viu alguma árvore gorda? Eu não! Elas são belas e esbeltas, tal como todo mundo deveria ser. Além disso, elas renovam o ar em nossa volta, melhorando meio ambiente. E só precisam de luz! Não é uma maravilha? Nem é preciso comer! Basta a gente ir até a janela da casa ou do apartamento em que a gente mora, pôr as mãos na janela e deixar a luz entrar para iniciar o processo. Faça o teste, veja se dá certo. E depois me diga, tá? Vou ali comer uma coisinha e já volto.

14/11/2010

terça-feira, 2 de novembro de 2010

A MÁQUINA DO TEMPO

Enquanto aguardava para ser atendido, em um Banco do qual sou correntista, deixei-me inebriar por uma espécie de tec – tec – tec cadenciado, que vinha do fundo do salão em que me encontrava. Procurei com a cabeça por todos os lados e, sem conseguir me conter, abordei um funcionário que ali passava. “Com licença, esse barulho não seria de uma”... “É isso mesmo que você está pensando. De uma máquina de escrever”. Fiquei pasmo: como alguém, em pleno século XXI poderia ainda fazer uso daquilo? “Existe um tipo de ficha que só dá pra ser preenchida à máquina!”, ele arrematou. Não me contive: levantei-me, estiquei o pescoço e vi, por de trás de um pilar, uma grande máquina elétrica e, manejando-a com destreza, uma funcionária, já avançada na idade, sem olhar para as teclas, fazendo jus ao seu ofício de “datilógrafa”.

Aquela máquina de escrever tornou-se, para mim, naquele instante, como uma verdadeira máquina do tempo! Lembrei-me da máquina de minha mãe, uma Olympia de cor preta que vinha em uma malinha azul, de estampas florais. Muito mais arcaica que a máquina daquele Banco, a typewritter, como estava escrito nela, tinha teclas duras e pesadas, além de uma inconfundível fitinha vermelha e preta, sobre a qual os tipos batiam, fazendo as letras aparecerem. Meus pais eram “craques” no manuseio, minha mãe principalmente, de tanto bater contrato, quando também trabalhou em Banco. Eu, no entanto, sempre fui curioso: “catava milho”, como se diz – e ainda cato até hoje! Foi naquela Olympia preta que “datilografei” meu primeiro escrito, uma peça de teatro que encenaria na 3ª série do primeiro grau, hoje, ensino fundamental. Boas lembranças...

Lembro-me também quando pus as mãos pela primeira vez em uma máquina de escrever elétrica, no antigo serviço do meu pai. Fiquei encantado com aquele aparato “supermoderno”, que só escrevia ao ligar um botão. A escrita era muito mais rápida e o resultado final bem mais limpo que o texto da velha Olympia. Os documentos saíam muito mais bonitos, com cara de oficiais. Era um avanço, mas não como quando a indústria de máquinas de escrever lançou, na época em que os personal computers começaram a se tornar coqueluche, um modelo semieletrônico, com um visor digital e uma escrita mais suave. Elas tinham até memória, podendo guardar textos e datilografar em um número maior de caracteres. A novidade, obviamente, não vingou: para que ter uma máquina eletrônica se o computador fazia tudo aquilo e muito mais? Era o fim da era das máquinas de escrever.

Confesso que não gostei do tal do computador, logo de cara... achei-o frio demais, seco demais. Minha geração foi a da transição entre o antigo e o moderno. Assisti ao fim não apenas da máquina de escrever, mas dos vinis, do telefone a disco... Sentia falta daquele tec – tec – tec... Claro, hoje, posso afirmar que, como qualquer jovem da minha geração, estou totalmente inserido na era digital. Escrevo este texto em um moderníssimo netbook que, daqui a pouco tempo, será também peça de museu. Mas o que mais me chamou a atenção foi o fato de que mesmo o passado pode ter muito a nos ensinar. Ver aquela datilógrafa defendendo seu ofício nos mostra o quão estúpidos somos ao jogar o velho no lixo e abraçar o novo, sem olhar para trás; mas, principalmente, que um dia, nós também seremos velhos e que uma próxima geração fará o mesmo que eu fiz, naquela breve viagem no tempo, proporcionada por uma simples máquina de escrever.



Anaximandro Amorim,

Escritor e membro da Academia Espírito-Santense de Letras,

Cadeira 40.