Talvez ninguém saiba, mas dia 16 último deste mês foi o dia do gari. Faz muito tempo, eu queria escrever sobre eles. Desde quando, casmurro ao extremo, de dentro do meu carro, avistei um caminhão de lixo na minha frente com uns dois ou três na caçamba. Tentei fazer o possível para desviar, mas, de súbito, aqueles trabalhadores me comoveram. Metendo a mão no lixo, suportando um odor desagradabilíssimo, tarde da noite, enquanto tanta gente se divertia, lá estavam eles, contando piadas, brincando. Sua alegria era contagiante! Impossível passar indiferente!
Para quem não sabe, o nome gari vem de um francês, Pierre Gary. Durante o Segundo Império, mais precisamente no ano de 1876, Gary assinou um contrato com o Ministério Imperial para limpeza pública da cidade do Rio de Janeiro. Os trabalhadores ficaram conhecidos como “a turma do Gary” e o nome, aportuguesado, pegou de norte a sul do Brasil. Em Portugal, só de curiosidade, o mesmo profissional recebe o nome de “almeida”, por conta de um cidadão do mesmo nome, que também explorava esse ramo de atividade.
O que mais chama a atenção nos garis é que eles não chamam a atenção de ninguém. Parece paradoxal: quanto mais eles riem, gritam, mais passam despercebidos. Queremos nos desviar deles, fingir que eles não existem. Tal fenômeno tem uma explicação: é a chamada “invisibilidade social”. Durante um mês, o psicólogo Fernando Braga da Costa se vestiu de gari e começou a trabalhar com eles e, surpresa! O rapaz estudado, de classe média, tornou-se uma espécie de fantasma. Nem os professores foram capazes de enxergá-lo e a experiência virou o livro “Homens invisíveis – Relatos de uma humilhação social”, provavelmente o único estudo detalhado sobre o assunto.
E por falar em fantasma, acho que a única obra artística de que me lembro a respeito do tema foi o filme português “O Fantasma” (2000), de João Pedro Rodrigues. Nele, um “almeida” (o gari português) tem suas mazelas dissecadas durante as quase duas horas de projeção e, incrivelmente, tanto aqui quanto lá esses profissionais são alvo de preconceito, discriminação e desprezo, por parte dos demais cidadãos. Um verdadeiro homem invisível. Um fantasma! Nome, infelizmente, muito apropriado...
O inusitado nessa questão da invisibilidade social (ou pública, como queiram) é que, justamente, quando esses trabalhadores saem de cena é que nos lembramos de quão importante eles são. É quando nós os “vemos”. Tempos atrás houve greve de garis aqui em Vitória e, alguns meses seguintes, em Linhares, norte do Estado. Todos notaram, por óbvio! Foi só a sujeira ir se acumulando, acumulando... sujeira em que, muitas vezes, a gente não quer pôr a mão. Há quem não desça do apartamento com uma sacola de lixo! Para que, se temos quem faça o “serviço sujo”?
Talvez a única pessoa que tenha enxergado alguma poesia na profissão de gari foi um primo meu, quando criança. Hoje, adulto, ele nem se lembra muito bem, mas, quando pequeno, ele gritou bem alto para minha mãe dizendo o que queria ser quando crescesse: motorista do caminhão de lixo! É claro que todos nós caímos na risada, mas, se você perceber a sutileza da coisa, existe aí um quê de divertido. Aquele carrão enorme, cheio de luzes piscando pra lá e pra cá... e o bom-humor dos rapazes, aquele de que falei anteriormente. Você pode me achar louco, mas, depois de ver a cena do primeiro parágrafo, acho que, hoje, eu entendo esse meu primo.
Não, amigo leitor, não estou pensando em me tornar gari amanhã – apesar de não ver absolutamente nada de indigno nessa profissão. Mas, certamente, a partir de hoje, prometo passar a olhá-los com outros olhos. Aliás, prometo passar a olhá-los. Ah, você se lembra daquele mau-humor do início da crônica? Pois é, acabou num minuto. Dei seta, cortei o caminhão com calma e, por fim, buzinei cordialmente, em sinal de agradecimento. Sim, porque, naquele sublime instante, redescobri que para a gente ser feliz basta muito pouco. Basta apenas abrir os olhos e enxergar o que está na nossa frente.