domingo, 17 de outubro de 2010

HERÓIS?

O mundo parou para assistir ao resgate dos 33 mineiros soterrados na mina de San José, no deserto do Atacama, no Chile. Vítimas de um acidente que obstruiu a saída da mina em que trabalhavam, no dia 5 de agosto deste ano, aqueles homens amargaram dois meses de forçada convivência em um exíguo espaço de 50m². Salvos por uma bem-sucedida operação de resgate, que terminou no dia 14 de outubro, por intermédio de uma sonda de sugestivo nome, “Fênix 2”, os mineiros renasceram para o mundo, barbeados, limpos, bem vestidos e cheios de ânimo. Nesses dois meses de confinamento, como em um verdadeiro Big Brother, descobrimos a história do mineiro que, há alguns anos sem falar com o pai, conseguiu, com a tragédia, a reconciliação de toda a família; ou daquele que, sem conhecer a filha, deu-lhe o nome de “Esperança”, numa alusão ao acampamento; ou do mulherengo que tinha uma mulher, uma amante... e até uma namorada! Tudo isso recheado de belos óculos escuros, que eles não podem tirar, sob pena de “quebra de contrato”, e de um “cachê” de US$ 10 mil para cada.

Fico me perguntando o que será desses 33 homens após os seus 15 minutos de fama... há quem queira se lançar na literatura; há promessas de filmes e até mesmo de games sobre a “aventura” desses heróis. Heróis? Só se for da resistência! Ninguém parou para se perguntar como foi a vida dessas pessoas, a 700m da superfície, sem ar respirável, sem água potável e sem a esperança de serem encontrados, de início? Aquilo ali poderia ter sido o túmulo de 33 enterrados vivos! O que me dá certo alento, além de vê-los sãos e salvos, é que vozes mais lúcidas tanto da mídia nacional quanto internacional começam a levantar a poeira desse acontecimento. Passada a euforia geral, o drama dos mineiros do Chile revela um lado obscuro da economia de um país que, até bem pouco tempo, pensava eu ter expurgado suas mazelas, a caminho do sonho do “primeiro mundo”: infelizmente, o trabalho perigoso nas minas chilenas é uma constante de décadas e o regulamento legal da profissão, de 1983, já é considerado por muitos uma peça de obsolescência, devendo ser revisto há tempos. Fora isso, a fiscalização é frágil e acidentes acontecem não sem certa frequência, deixando à mostra o flanco de uma das principais atividades daquele país.

A própria história da mineradora dos “33 de San José” corrobora essa versão: a San Esteban mostrou o despreparo com a segurança e, indo um pouco mais longe, com a integridade de seus empregados. Prestes a pedir falência, provavelmente, neste 23 próximo vindouro, a companhia pode dar às vítimas e suas famílias um “calote” de US$ 12 milhões, ao deixar de pagar as indenizações. Ademais, soma-se ao fato que a mina em questão havia sido fechada em 2007, numa explosão acidental que resultou na morte de um trabalhador, sendo reaberta um ano depois, para ser palco de mais outro acidente, dessa vez, sem vítimas fatais, felizmente. Em plena festa de resgate, no entanto, outro mineiro morreu, desta vez em outra mina, atingido por uma rocha, mas a grande mídia conferiu-lhe poucas linhas. Nada podia ofuscar a festa nacional, montada pelos correligionários do presidente Sebastián Piñera, que viu na tragédia a possibilidade de aumentar sua combalida popularidade.

Sinto dizer mas os mineiros do Chile não são heróis: são vítimas de um sistema que privilegia o lucro a todo custo, sem se importar com a dignidade da pessoa humana. Somam-se a eles os trabalhadores bóias-frias do Brasil; ou os das minas de diamantes da África; ou os trabalhadores asiáticos, que enfrentam jornadas de até 12 horas de trabalho ganhando menos de US$ 1,00 a hora, para inundar as gôndolas de nossos supermercados com produtos baratos, a despeito de nossa tão escorchante carga tributária. Infelizmente, os “33 de San José” não sofrerão de “estresse pós-traumático”, como a grande mídia apregoa, mas de falta de oportunidades, mesmo, pois, quando a fama for embora, grande parte, se não todos, voltarão para debaixo da terra. Que diria Franklin Lobos: 27º mineiro a ser resgatado, Lobos foi jogador profissional da seleção chilena nos anos 1980. Relegado ao ostracismo, despediu-se dos campos em 1995 para se tornar taxista e depois, mineiro. Entrevistado sobre o que faria após o acontecido, foi categórico: “vou voltar para a mina”.



Anaximandro Amorim

Escritor e membro da Academia Espírito-Santense de Letras

Cadeira 40