domingo, 20 de novembro de 2011

A AURORA E O OCASO

Para a amiga Thelma Maria Azevedo


Foi em 2003, aos 24 anos, que eu comecei a apresentar um programa de televisão no extinto canal a cabo DTV, da RCA-Company. O nome era inusitado: “Jovens Escritores” e o objetivo, claro: botar no ar a “garotada” que despontava na poesia e na prosa do Estado. No entanto, procurando pauta para mais uma edição, deparamo-nos com uma notícia curiosa: uma “vovó”, então com mais de setenta anos, mexia na internet com a maior destreza e havia até construído um site! E melhor, um site com a biografia de vários poetas do Espírito Santo (o www.poetas.capixabas.nom.br)! Seu nome: Thelma Maria Azevedo. Sua idade, então, era de 72 anos. Como não conhecer alguém assim?

O que eu não sabia era que eu faria muito mais do que um entrevista com ela: faria uma amizade enorme, um laço que nos uniria em prol da mesma paixão: o amor pela poesia, pelos livros, pela Literatura! Fomos, a equipe e eu, na casa de Thelma, que nos esperava toda bonitinha que só, cabelinho branco cortado, maquiagem e um sorriso estampado no rosto. Ela já havia escrito seu primeiro livro, naquela altura, “Fragmentos de Memória” (2000), em que resgatava sua genealogia, mostrando o viés de grande pesquisadora que foi. Aliás, memória era o que não faltava, pois as paredes do apartamento eram recheadas de fotos dos parentes, de gerações em gerações.

A gravação não deu certo! Eu me lembro que fazia um calor infernal no dia e que a luz não funcionou direito, o que nos levou a marcar com Thelma Maria no estúdio. O resultado foi um encanto e o programa fez um grande sucesso, tanto que, posso dizer, sem pretensão alguma, mas com muita felicidade, que fui eu quem a lançou, definitivamente, no meio literário capixaba. Naquele tempo, eu, um garotão ainda, membro da Academia Jovem Espírito-Santense de Letras, queria despontar no raiar da aurora da minha carreira, tendo como pretensão a de me firmar como escritor; e ela, uma doce senhorinha, via na Literatura uma forma de encontrar um objetivo aos seus últimos anos.

Dona Thelma, como eu sempre respeitosa e carinhosamente a chamei, e eu, não tardamos a frequentar os mesmos círculos literários e isso foi nos aproximando de tal maneira que, um dia, numa homenagem a uma escritora da terra, disse-lhe que gostava dela como uma avó e ela, com o coração ainda maior que o meu, disse-me que me tinha como um filho. E não era muito difícil encontrar alguém que, ao me ver chegar sozinho a algum evento, perguntasse: “sua avó está onde?”. Eu amava! E todo esse carinho eu tentei escrever um pouco na orelha do segundo livro de Thelma, o “Uma poesia, algumas crônicas e tanta coisa que sempre escondi...” (2005), que rendeu outra entrevista – e mais um nó, atado bem forte, nos laços de nossa amizade.

O programa acabou, mas o carinho que sempre tivemos um pelo outro, não. Tanto que sempre nos frequentamos, eu indo a casa dela, pondo-lhe a par dos acontecimentos literários e vice-versa, quando tive de me afastar um pouco do meio, por motivos profissionais. Posso vê-la descendo as escadas do prédio, devagarzinho, as perninhas meio trôpegas, um sapatinho baixo no pé, dizendo “tem paciência, meu filho, porque velho é devagar, mesmo”. Sempre vou me lembrar do carinho com que ela e Aparecida, sua cuidadora durante longos 17 anos, dispensavam por mim, recebendo-me com um suco de uva de caixinha bem gelado, servido em dois copos, um, para a bebida, e outro, para as pedras de gelo. Ouvi falar até que esse suco já estava até no orçamento do supermercado, no fim do mês...

Em 2006, num festivo 14 de dezembro, ganhei um grande presente de aniversário: foi a entrada da escritora nos quadros da Academia Feminina Espírito-Santense de Letras. Eu ainda me lembro de quando ela chegou a um dos auditórios da Assembleia Legislativa do Estado, depois de mim, dando-me um longo e forte abraço. Como eu fiz campanha para ela! Como quis que ela entrasse! Foi na cadeira número 29, cuja patronesse é a cronista Carmélia Maria de Souza. Depois do caso passado, eu ainda me lembro de ela ter me perguntado: “meu filho, será que eu ainda vou estar viva para ver você entrar na Academia Espírito-Santense de Letras”?

Foi no ano de 2008 que Dona Thelma lançou o seu “Dicionário dos Escritores e Escritoras do Espírito Santo”. Ela estava toda prosa porque seu nome saiu em coautoria com o do escritor e então presidente da Academia Espírito-Santense Francisco Aurélio Ribeiro. Fruto de sua competente pesquisa de anos no seu site, ela e Ribeiro conseguiram triar uns 300 ou 400 escritores, dos mais diferentes matizes, entre vivos e mortos. Ainda brinquei com ela, perguntado: “e eu, estou nesse dicionário?”, no que ela respondeu, com ternura: “e como você não poderia estar?” e me deu um exemplar, com a mais linda dedicatória que ela me escreveu: “Ao meu amigo Anaximandro, ‘neto do coração’, descobridor, incentivador, com o desejo de que compartilhe da alegria deste trabalho”.

A alegria virou um susto, nela e em todos. Foi o meu grave acidente, em 07 de setembro de 2009. Lembro-me que ela foi me visitar, com a nossa confreira e amiga Jô Drumond, em minha casa, quando já estava tudo bem. Ainda brincamos de que era ela que de vez em quando falava da morte e foi esta que quase me levou. Ela dizia, bem humorada, que tinha “problema de DNA” (“Data de Nascimento Avançada) e que Jesus vivia a chamando mas que ela se escorava nas paredes do apartamento, dizendo: “Só mais um pouquinho, Senhor, só mais um pouquinho...”

Tomei posse na cadeira 40 da Academia Espírito-Santense de Letras em 16 de setembro de 2010, no auditório da Aliança Francesa de Vitória. Era a realização de um sonho de adolescência, pois desde quando havia lançado meu primeiro livro, aos 15 anos, queria muito isso. E ela estava lá, participando, como sempre, desse sonho. Nem os lances da escada da Aliança foram suficientes para que ela desistisse de estar presente comigo, provando que a amizade, quando sincera, pode tudo, desde unir pessoas de gerações diferentes, até fazer galgar qualquer obstáculo.



Thelma Maria Azevedo começou a pressentir seu ocaso neste 2011. Por fim, recolhida, doente, queixava-se da saúde, do peso que os anos lhe punham nas costas, impedindo-lhe de participar das atividades literárias, do convívio com os escritores. Uma de suas últimas aparições públicas foi na festa de fim de ano das Academias, no prédio da escritora e amiga Sônia Lóra. Lembro-me que ela permaneceu sentadinha, o tempo todo. Lembro-me também que houve um sorteio e que ela não ganhou nada, a não ser uma flor que retirei de um dos buquês e lhe dei, para sua alegria. Depois, sua presença foi rareando, rareando, rareando...

Eu fui uma das últimas pessoas a vê-la. Acamada, mas feliz com a minha presença e ainda esperançosa de poder voltar a andar, para continuar sua militância em prol das letras. “Será que eu vou andar de novo, meu filho?”, ela perguntava e eu, por óbvio, dizia que sim. Nunca perdi as esperanças de que ela sairia daquele estado, tanto que comecei uma campanha para que os amigos escritores doassem fraldas geriátricas para ela, no que, felizmente, fui atendido, pela solidariedade do meio e pelo carinho com que todos tinham por aquela figura especial que foi Thelma Maria Azevedo.

Eu a vi pela última vez no quarto 506, do Hospital dos Servidores Públicos, no centro de Vitória/ES. Lembro-me que errei o horário de visita, chegando um minuto depois do fim, mas que tive minha entrada permitida por uma sensível recepcionista que, certamente, percebeu o carinho que sempre nutri por Thelma. Foi uma surpresa para a escritora, cujos olhos se encheram de ternura e as mãos, meio trêmulas, ainda conseguiam segurar as minhas. Conversamos por uma meia hora e ela ainda me perguntou “será que eu vou sair dessa, meu filho?” e eu, sempre com convicção, disse-lhe que sim, sem jamais perder as esperanças.

Dona Thelma saiu sim. Foi para casa, para um rápido período com a família. O grande e terno coração, porém, não aguentou e a fez voltar para o mesmo hospital. Dessa vez, sem escoras nem minutinhos a mais, Jesus a chamou definitivamente para perto de si, para que ela declamasse poesias para os anjos, junto dos escritores que sempre amou. Foi no dia 12 de novembro de 2011 que se deu o ocaso de Thelma, às 23h10min. Aos 81 anos. O corpo todo parou. E nós escritores também.

Thelma Maria Azevedo deixou quatro obras, sendo a última o “Dicionário dos Poetas Capixabas”, lançado em outubro de 2011, no Mercado Literário de São Sebastião, em Jucutuquara. Sua última tristeza foi não poder ir ao lançamento. Mandou a nossa confreira Ester, que muito bem a representou. Também deixou uma filha, um filho, um neto e uma bisneta. Além de um outro neto, seu “neto literário”, eu, que, doravante, tenho por missão jamais deixar morrer a memória (e o trabalho, sobretudo do site) dessa grande autora e pesquisadora. Essa é, aliás, a tal “imortalidade” pregada pelas Academias: o autor vai, a obra fica.

O derradeiro escrito de Thelma foi o texto “Minhas últimas considerações”, em que ela exprime o desejo de ser cremada e ter suas cinzas jogadas no mar de Vitória, cidade que a acolheu e que sempre amou, apesar de barriga-verde de nascimento. Sua alma vai para o céu, pelas mãos de Nossa Senhora, a quem sempre se apegou, enquanto o corpo vai sumindo, os átomos se misturando aos da paisagem, para que ela seja lembrada por todos em todos os lugares. Gostei assim. Um final poético, para quem amava tanto a poesia. Tanto que só eu tenho um mimo que mais ninguém tem: uma fita cassete que ela gravou para minha mãe, em 2008, declamando durante 60 minutos. Ela viva dizendo que não sabia escrever poesia (que bobagem!), mas que amava declamá-las – e começou com a nossa preferida, “Vestido de Chita”, do poeta do morro da Fonte Grande Chico dos Ossos, de cuja história pouco sabemos, mas que tão importante foi para ela e, agora, para mim.

E é com esses versos, que ofereci a ela, no dia do seu ocaso, que quero terminar esta singela homenagem a uma mulher simples, mãe, servidora pública, mas que com humildade galgou o panteão das Academias de Letras e que, certamente, ainda será reconhecida como grande autora, grande pesquisadora mas, principalmente, como alguém que amou o Espírito Santo!



“Nada sei de simitria

Faço versos por brinquedo

Mas trago rima no crânio

Que nem foia de arvoredo

Quando tá carregadinho

Que inté a mata faz medo

Adoro este meu sertão

Minha paioça caída

Minha viola sentida

Minhas unha carcomida

De tanto roçá nas corda

As minha mágoa sentida

Vejo o sol quando ele acorda

Vejo quando vai drumi

Ouço o pio do sanhaço

O canto da juriti

Vejo vancê caboquinha

Eu nunca esqueci de ti!

Aos dispois, espero a lua

Que vem com todo esprendô

Iluminando a paioça

O nosso ninho de amô

Que fiz com tanto carinho

Que vancê foi e nunca mais vortô

Inté hoje ainda de lembro

Do dia de sua partida

Em que vancê, minha frô

Tava de chita vestida

Nos óio tu tinha água

Hum! Era lágrima fingida

Vancê tá fazendo farta

Nas festa vai noite arta

Porém não tem esprendô

Porque no jardim frorido

Tá fartando uma rosa

Que é vancê, meu amô!

Farta também um negócio invisivi

Quanque troço que não sei expricá

Acho que é sodade

Que o meu coração invade

E não me deixa cantá

Abandona os astromóvi

Os bonde, os bicho que move

Isso serve pra matá

Vem andar no meu jerico

Mió ser pobre que rico

Deixa a farsa capitá

Vorta, vorta caboquinha

Quero ver essa boquinha

Bem pertinho de mim cantá

Antão minha viola geme

E não há cantadô que não tema

As minha rima sartá

Mas se vancê não vier nunca

Iscuita bem, óia, asunta

Mais um pouco de atenção

Pode dizê pra cidade

Que vancê só pru mardade

Matô pru pervercidade

Um cantadô do sertão

Que vive te esperando

Chorando, sempre chorando

Improrando, improrando”



Anaximandro Amorim, escritor, membro da Academia Espírito-Santense de Letras e “neto literário” de Thelma Maria Azevedo (1930 – 2011).

INFÂNCIA 80 – PARTE II

“Minha dor é perceber que apesar de termo feito tudo, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais...”(Belchior)



“Zeitgeist” (pronuncia-se zaitgaist) é o segundo livro da minha amiga, advogada, jornalista e escritora Jeanne Bilich. Colaboradora regular do jornal “A Gazeta”, Jeanne permeia, em dezenas de crônicas, vários assuntos, dentre os quais, mais presente, o conflito de gerações, como a sua, a dos chamados baby boomers, a turma que nasceu no pós-Segunda Guerra, com os tempos de hoje, como ela diz, da era da “pós-modernidade”. Pílulas anticoncepcionais, sutiãs queimados convivem lado a lado com laptops, ipods, tudo se descortinando frente aos olhos de uma mulher maravilhada com os prodígios deste século. O livro traz questionamentos tão interessantes que, após chegar ao fim da última página, perguntei: e eu? Onde encaixaria a minha infância 80 nessa história toda?

A minha primeira dificuldade foi, aliás, me encaixar... nunca entendi direito esse lance de geração. Achava que eu é que era da geração baby boom. Pra quem não sabe inglês, a palavra, ao pé da letra, significa “explosão de bebês”. Sempre soube que no fim dos anos 1970 a natalidade aumentou no Brasil e no mundo. Também achava que eu era da X Generation, por conta de um jeans que era vendido quando eu era criança. Qual não foi o meu susto quando, em pesquisa no Google, descobri um artigo que dizia que, na verdade, eu e meus amigos de infância 80 pertencíamos à “Geração Y”, que nem sabia que existia! Aliás, saber exatamente quem é quem foi uma luta: nasci em 1978 e havia artigos que diziam que tal geração era do fim dos anos 70, do começo dos anos 80 e por aí vai. O que me fez sentir que, certamente, uma das nossas características seja essa: somos difíceis de ser encaixados em um padrão preestabelecido.

Explico: descobri que nós, da “Geração Y”, não temos forma definida, fazemos muita coisa ao mesmo tempo. Isso não deixa de ser uma verdade. Só fico me perguntando se tudo é uma questão de causa ou consequência. Inauguramos as aulas de caratê, judô, balé, jazz, depois da escola. Fomos também a primeira geração a ir para creches, um escândalo para a época, porque as mães já começavam a ir pra rua, pra sustentar a casa, uma vez que a lei do divórcio já havia sido aprovada no final da década anterior. Somos os filhos de mães divorciadas, solteiras, ou que, simplesmente, em épocas de hiperinflação, resolveram contribuir para o orçamento doméstico. Muitos de nós ficamos por conta das babás, das avós... Tivemos de aprender a nos virar sozinhos, fazer a lancheira, pegar o ônibus, a Kombi. Acho que nossa geração foi a interseção entre dois mundos, o da rua e o da casa, dos apartamentos que tiraram de nossos pés os quintais de chão batido e de caramboleiras para nos enfiar nas quadras esportivas, nos clubes, na frente dos aparelhos televisores.

Dizem também que nós crescemos com a tecnologia. De fato, eu me lembro do meu Atari, que tenho, hoje, presente de um amigo, com seus cartuchos e uma caixinha seletora, para ser acoplada atrás da tevê. As imagens eram de péssima resolução, as telas abauladas, com tubos gigantes, mas que serviam para tudo, inclusive de monitor de computador. Meu primeiro foi um TK 2000, que demandava até fita cassete! Mais tarde, foi um MSX, moderníssimo para a época. Tudo tão rudimentar e, ao mesmo tempo, tão inocente, que nos dava a sensação de que sabíamos mexer, de que tínhamos o controle. Creio, inclusive, que essa foi uma das marcas da década de 1980: era o fim da ternura e o início de uma euforia que viria a conhecer seu boom nos tempos de hoje, em que a tecnologia muda em menos de seis meses – e não conseguimos mexer em nada. Talvez por isso nos sintamos tão jovens e tão “dinossáuricos”, ao mesmo tempo! Talvez por isso que nos sintamos, de vez em quando, tão fora do controle!

O artigo também dizia que somos questionadores, queremos flexibilidade de horário, mudamos de trabalho com frequência. Não sei se isso é exatamente uma verdade. Acho que, questionador, todo mundo é. Talvez a nossa geração o seja mais porque nunca se teve tanta opção nesse mundo como agora. Antigamente, dizem, as pessoas saiam da faculdade com emprego, entravam em um trabalho e ali se aposentavam. As opções eram poucas e a vida era aquilo ali e pronto. Hoje, o mundo da tal “pós-modernidade” é tão dinâmico que nos sentimos perdidos. E, de fato, eu noto em nós um certo vazio existencial, um “para onde ir depois?”. É tudo tão efêmero, tão rápido, que não me espanta, muitas vezes, encontrar gente da minha idade sem saber o que quer, sem saber o que fazer... talvez por isso tenha tanta gente que queira mudar de vida, de emprego, de marido, de esposa, de cor de cabelo, na camaleonice de um povo sem fôrma, sem forma, fora dos moldes, que às vezes é criança, às vezes é adulto, às vezes é velho, às vezes é novo.

Trinta anos depois, estamos aqui, prontos pra ganhar o mundo, a despeito de todos os nossos defeitos e qualidades. Dizem que somos mais ansiosos, mais impulsivos; dizem que somos mais rápidos, mais flexíveis. A verdade é que não somos nem melhores, nem piores que qualquer outra geração. Estamos indo para as ruas, estamos trabalhando; estamos buscando as igrejas, estamos nos casando. Como serão os nossos filhos? Será que, no fundo, somos uma geração careta? Não sei. Contraditória, certamente. Esta é a nossa marca. Ao mesmo tempo em que dominamos o mundo virtual com blogs e perfis nas redes sociais, buscamos um concurso público, para termos estabilidade. Ao mesmo tempo em que não queremos sair da casa dos pais, queremos ter nosso próprio apê, de preferência, comprado na planta. Talvez, como minha amiga Jeanne, eu também escreva, um dia, sobre nós. Mas, de antemão, ao ver a turma da infância 80 nos dias de hoje, eu me lembro daquela música de Belchior: “ainda somos os mesmos/ e vivemos como os nossos pais”; o invólucro pode ser diferente, mas não o conteúdo. Somos todos, no fundo no fundo, a mesma coisa. Somos todos, gente.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O DIÁRIO DE UM PEDESTRE: COMO FOI FICAR TRINTA DIAS SEM CARRO

Por motivos que nem convém lembrar, na troca de um carro por outro, tive de ficar uns 30 dias a pé. Nada mal para uma pessoa que não gosta de dirigir, se não fosse sentir na pele a difícil convivência entre pedestres e motoristas, nesse nosso caótico trânsito da Grande Vitória.

Nos meus primeiros dias de pedestre, a principal dificuldade foi vencer a dependência do automóvel. Isso, a gente só percebe quando anda a pé, mesmo. É possível viver sem carro, sim, obviamente, até um certo limite. Quando é preciso se deslocar rapidamente, para uma emergência ou um compromisso, por exemplo. O problema é quando você vê gente tirando carro para ir a duas quadras comprar pão ou chegar até a praia de Camburi, morando nos bairros circunvizinhos. Aí, é demais! Confesso, de início, que já fui assim, mas hoje, não. No entanto, sou daqueles que precisam do carro para um rápido deslocamento, coisa, aliás, muito difícil nos já comuns engarrafamentos da cidade, pagando, no final, caro por isso, seja por conta do combustível, do pedágio e dos rotativos.

O problema, porém, é o transporte público. Aqui em Vitória existe até uma certa oferta de ônibus, mas só de ônibus. Assim, os coletivos vivem sempre lotados, sobretudo – e obviamente – nos horários de pico. Há momentos em que andar neles é uma tarefa desumana e perigosa, dado o volume de pessoas que se engalfinham. Tudo seria mais fácil se houvesse outras alternativas, tais como um metrô de superfície, túneis ou até mesmo a ressurreição do aquaviário, que pouparia um precioso tempo para os moradores de Vila Velha. Foi o que eu pude perceber, nessa época de ônibus, para cima e para baixo. É tudo uma espécie de “espiral do fracasso”: menos alternativas, mais ônibus, mais veículos. O resultado é o “tempão” que não apenas eu, mas todos os capixabas, esperamos nos pontos lotados.

Aliás, por falar em coletivo, como é difícil ler dentro do ônibus! Leitor contumaz, não conseguia ler uma linha direito, dada a precariedade de nossas ruas. É certo que a cidade está em obras para ficar melhor, mas não seria possível recapear o que já foi mexido? Tem buraco pra tudo quanto é lado – e isso é um perigo nos dias de chuva, quando não se consegue ver direito para onde se trafega; nos dias de sol, quando a poeira levanta e suja as casas, os estabelecimentos e os olhos e pulmões da gente; e para os pedestres, que, anda, vira e mexe, caem em um buraco mal tapado, como aconteceu com uma senhora, em Jardim da Penha, recentemente, num bueiro aberto. E ela quase perdeu a perna!

E por falar em pedestre, as nossas calçadas andam em petição de miséria! Retomo Jardim da Penha: tem calçada mais alta, calçada mais baixa, calçada com rampa, sem rampa, com árvore, sem árvore. Eu, que sou jovem, ainda consigo desviar dos “obstáculos”, mas fico imaginando quem é idoso ou mesmo deficiente físico. Fora quando os carros passam rentes a nós, transeuntes. Ou quando quase passam por cima, como no caso das faixas de pedestre. Até que, em Jardim da Penha, elas são respeitadas, mas na Praia do Canto, bairro que fica ao lado... quanto mais bonito é o carro, menos o motorista enxerga o pedestre. Não dá pra entender...

De fato, muito da culpa do trânsito é, também, por causa de nós, cidadãos. Lembro-me da minha primeira aula teórica de autoescola: “você está conduzindo uma tonelada de metal que pode matar você e os outros”. Fiquei marcado por esta frase. Acho que todo motorista deveria ouvir isso antes de sair de casa. Quanta imprudência! A começar pelo uso indevido de buzina. Por que será que em todo engarrafamento tem motorista que atola o dedo no volante? Será que há uma combinação secreta que faz com que, dependendo da quantidade de toques, o carro vire um helicóptero e você possa sair voando?

Há motoristas que pensam que as setas são opcionais e vão virando assim, sem mais nem menos, sem nos preparar – pedestres e outros motoristas – para a curva. Quando viram onde não podem. Estacionamento proibido, então, nem se fale! Tem muito jovem estacionando em vaga de idoso, muita gente saudável em vaga de deficiente... é o verdadeiro carnaval! Quando não se prendem os acessos àqueles que necessitam de cadeira de rodas ou que têm dificuldade de locomoção. E isso não é nem uma questão de respeitar as leis de trânsito, não. É uma questão de Direitos Humanos!

Motos, então, são um caso a parte: no volante ou fora dele, cedo aprendi a diferença entre “motociclista” e “motoqueiro” – e este último é quem povoa o trânsito. São aqueles que adquirem uma motocicleta com o objetivo único de “pegar o corredor”, buscando o vergonhoso “jeitinho brasileiro” no trânsito – e piorando as condições de circulação. Como vi gente cair de moto e como vi moto quase pegar muita gente! Como quando uma resolveu trafegar no meio da Avenida Princesa Isabel, no Centro de Vitória, na faixa destinada exclusivamente aos pedestres. Revoltante. Sorte que ninguém se machucou.

Ao final dos quase trinta dias de pedestre, eu peguei meu carro novo. “Mais um carro no trânsito”, pensei. Engraçado, confesso, nunca fui um motorista estressado, mas, agora, depois desse tempinho andando a pé, pude enxergar muita coisa que, depois de tanto tempo ao volante, não via. Uma delas é que não há nada mais saudável que fazer rodízio de carona. Peguei várias e ando dando várias também. Muitas empresas estimulam a prática, que desafoga o trânsito, além de contribuir para a camada de ozônio. Pode reparar: pelo menos, aqui na Grande Vitória, a maioria dos automóveis circula com motoristas solitários ao volante.

Outra coisa importante foi que não adianta se estressar: tem muito carro e moto na rua, os semáforos são dessincronizados e tudo mais, mas a coisa é assim, mesmo. Saia mais cedo de casa ou bote uma musiquinha bem relaxante no seu rádio e deixe a coisa rolar. É como diria a minha avó: “o que não tem remédio, remediado está”. E se você for daquele tipo que não se desestressa nunca, largue o carro: vá de ônibus, de carona, de bicicleta, ou até mesmo a pé. O trânsito já está muito cheio de malucos e um a menos já é um ótimo começo!

Não há melhor aprendizado do que quando a gente sente algo na pele. Foi o que aconteceu comigo. Acho que todo motorista deveria largar o carro por trinta dias e sentir toda fragilidade de ser um pedestre. Certamente, o trânsito seria mais humano e isso, tal como respirar ar puro ou preservar as árvores, também faz parte de um meio ambiente sadio e equilibrado. Ficar sem carro não é o fim do mundo, é a melhora dele. Tentar é uma questão de coragem. E de cidadania também.

Crônica publicada na Revista dos 90 anos da Academia Espírito-Santense de Letras, edição especial, patrocinada pelo Instituto Sincades, às páginas 58 a 61 (novembro de 2011)

sábado, 5 de novembro de 2011

DISCURSO DE BOAS-VINDAS AO ACADÊMICO MARCOS TAVARES

DISCURSO DE BOAS-VINDAS AO ACADÊMICO MARCOS TAVARES

Excelentíssimo Senhor Doutor Gabriel Augusto de Mello Bittencourt, Presidente da Academia Espírito-Santense de Letras,

Excelentíssimo Senhor Álvaro José Silva, Primeiro Secretário da Academia Espírito-Santense de Letras,

Demais autoridades aqui presentes, colegas acadêmicos, senhoras e senhores,

Já dizia o escritor e pesquisador Reinaldo Santos Neves, em artigo de fôlego, que não me canso de citar, publicado no site “www.estacaocapixaba.com.br”, de nome “Mapa da Literatura Brasileira Feita no Espírito Santo”, que a década de 1980 foi a época áurea das Letras de nosso Estado. De fato, não sei por que, os anos 80 sempre exerceram um grande fascínio em mim. Talvez pelo fato de eu ter passado minha infância naquele período, talvez porque, escritor precoce que fui, me lancei na década seguinte, sob influência dos grandes autores daquele decênio, que até hoje merecem destaque na História das nossas Letras. Nomes como os de Francisco Grijó, de quem tive a honra de ser aluno, Paulo Sodré, Pedro Nunes, Waldo Mota, Bernadette Lyra, Fernando Tatagiba, Lacy Ribeiro, Álvaro José Silva, Flávio Sarlo, Adilson Vilaça, só para começar a citar – e parar por aqui, para que injustiças não sejam feitas! – foram uma grande influência para mim. E dentre todos esses autores, tenho a honra de, nesta noite, ter sido o escolhido para dar as boas-vindas a mais um filho dessa profícua geração. Seu nome: Marcos Tavares.

Conheci Marcos Tavares, primeiramente, por ouvir dizer. E bem, obviamente. Tímido pesquisador, porém grande entusiasta da nossa Literatura, eu já havia lido bastante coisa sobre e do autor, até ter a honra de entrevistá-lo em um programa de televisão que apresentava, com o inusitado nome de “Jovens Escritores”, no antigo canal DTV da RCA-Company, pioneiro na divulgação dos autores da terra. De início, espantei-me com os e-mails trocados. Longos, demasiadamente longos, sempre com jogos de palavras e neologismos, bem ao estilo do autor! Eram verdadeiras crônicas, o que, desde então, me davam uma pista do escritor que teria a honra de conhecer, conviver e, agora, apresentar a todos. Não foi difícil fazer amizade com a figura simpática, de jeito simples, mas de refinado conhecimento e humor afiado, bem ao espírito dos escritores de apurado senso estético.

Marcos Tavares é capixaba da gema: natural de Vitória/ES, nascido em 16 de janeiro de 1957, é o mais velho dos doze filhos do ferreiro, serralheiro, mecânico geral e garimpeiro José Tavares e da dona de casa Maria Luiza Silva Tavares. Passou sua infância na Vila Rubim, região do centro da cidade, morando com a numerosa família na chamada “Casa de Pedra”, residência cuja origem resta obscura até os dias de hoje. E talvez esse quê de mistério tenha dado o pontapé inicial na formação do rico imaginário do autor: indagado sobre como poderia haver ali tão incomum residência, Marcos contribuía para aumentar o número de “causos” em torno do assunto, dizendo que a casa tinha sido obra de frades franciscanos, de escravos, de que ela era malassombrada, de que havia morcegos, fantasmas e tantas outras histórias mirabolantes que lhe renderam o apelido de “O Conde”, talvez por conta do Conde Drácula, talvez pelo inesperado ar aristocrático, o que contrastava com a filosofia da família, visto que o senhor José Tavares era militante comunista e que seu senhorio, conhecido pela alcunha de Mestre Adolfo, só alugava a residência para quem comungasse na mesma cartilha! O garoto Marcos Tavares era tão ardiloso, que chegava a inventar cartas supostamente escritas por alguém do Primeiro Reinado, só para espantar algum possível desavisado! Ou mesmo mapas, que eram lançados em garrafas, embaixo da Ponte Seca, naquela época, banhada por um braço da baía de Vitória, com supostos tesouros por ele forjados.

Família de parcos recursos, os Tavares não contavam com uma biblioteca em casa. O amor pela ficção, portanto, começou com a oralidade, pelas histórias contadas ao futuro escritor pela mãe e pela avó, Dona Osvaldina Góes; e com uma infância tão rica em fantasia, não tardou o menino Marcos a se iniciar na leitura, começando, como toda boa criança, pelos quadrinhos, sobretudo os da antiga Editora Brasil Limitada, a EBAL: Super-Homem, Batman, Homem Aranha, Fantasma e tantos outros super-heróis eram indispensáveis itens de coleção, pois o menino, numa época em que trocar gibis estava no auge, sentia um ciúme danado das suas revistinhas, preferindo guardá-las, no baú de casa e da imaginação. Para os livros, foi um pulo: João Cabral de Mello Neto, Carlos Drummond de Andrade, critica literária. Segundo ele mesmo diz, “é um leitor compulsivo, lendo tudo o que estava em sua frente. Até bula de remédio”...

Esse amor pelos livros fez com que o garoto Marcos aprendesse a ler rapidamente, antes mesmo de todos os coleguinhas, tanto que na primeira série ajudava a professora na alfabetização. Era uma espécie de monitor de quem tinha mais dificuldade. Os colegas diziam que aprendiam mais com ele do que com a professora. Obviamente, nosso então futuro acadêmico já lia jornais em alto e bom tom, só para angariar os aplausos dos possíveis ouvintes. Dentre eles estava a madrinha de seu primo, um relapso na escola! Sempre envergonhada do afilhado e dada à semelhança dos garotos, a madrinha, que também era professora, dizia que seu afilhado era Marcos e, só para exibi-lo, punha-o para ler textos de jornais, cada vez mais difíceis. Ainda bem que o menino jamais a decepcionou!

Aos 16 anos, Marcos Tavares transferiu-se com a família para o bairro de Santa Tereza. Corria o ano de 1973 quando, afinal, munido de grande imaginário e daquele ímpeto que só mesmo os prodígios têm, Marcos deu os primeiros passos na sua bem sucedida carreira literária. Foi publicando poemas no suplemento “Tribuna Jovem”, do jornal “A Tribuna” que o jovem poeta, então restrito aos meios escolares, começa a se tornar conhecido. E foi ali, nos bancos da escola, que Tavares conhece outro poeta, Miguel Marvilla, de quem se tornaria amigo. Dizem que eles se conheceram por meio de suas poesias, passadas de mão em mão pelos colegas. Um dia, os amigos estavam apaixonados pela mesma garota. Escreviam poesias e mais poesias quando, de repente, ao ver a menina passar, Miguel pulou um muro, pegou uma rosa e ofereceu à jovem amada. Marcos ficou, mesmo, só na poesia...

Mais tarde, o jovem Marcos trava amizade com outro poeta e, como de hábito, de forma inusitada: foi com Oscar Gama Filho, na fila do exército, no alistamento do 38º Batalhão de Infantaria. O que uniu os dois? A Literatura, é claro! Enquanto esperavam para se apresentar, Oscar percebeu que Tavares lia “De Sélesis da Danações”, de Carlos Nejar. Este era o código para selar uma amizade de muitos anos, além de uma parceria de sucesso. O novo amigo convidou-o para ver a exposição “Varais de Edifícios”, na Aliança Francesa. Poemas de Oscar e desenhos de Eugenio Herkenhoff. Ficaram assim, Oscar e Marcos, muito ligados pela Literatura, tanto, que Marcos até participou de uma das peças do amigo, “Estação Treblinkla-Garden”, de 1978 a 1980, fazendo o papel de... uma mulher grávida (e da Cultura Capixaba)! Foi num festival de Teatro Experimental, no Carlos Gomes. Era época de grande efervescência cultural, com a Ditadura dando seus últimos suspiros, de um lado, e jovens estudantes ávidos em se expressar, do outro. A peça, uma tragicomédia, discutia, dentre outras coisas, as relações de poder. Foi nessa época que Tavares travou conhecimento com poetas militantes de sua geração, tais como Gilson Soares, Benilson Pereira, Ivaldo Venturini e José de Anchieta Gonzaga, presentes nas reuniões da Aliança Francesa.

O escritor viva os agitados anos 1980 no auge de sua juventude. A pena era incansável, de tal arte que o amigo Miguel Marvilla dizia que Tavares só falava de Literatura. Parecia um “lunático”, segundo o próprio Miguel, que lhe dedicou o poemeto “Ofício”: “imprescindível o uso da janela:/é seu ofício de pretender a lua”. E parecia ser verdade, pois até sobre ufologia Marcos Tavares já escreveu, tendo publicado sobre o assunto numa revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, por insistência de outro amigo, Renato Pacheco. Mas era hora de pôr os pés no chão e arrumar uma carreira. Mas... qual o destino para alguém que já fora aprendiz de tipógrafo, encanador, auxiliar de oficinas, cobrador de promissórias, estoquista, estagiário em empresas públicas e professor substituto?

Para espanto de todos, Marcos optou, no vestibular, para o curso de Matemática! Foi em 1980, quando o jovem poeta resolveu buscar a poesia por detrás dos algarismos, fórmulas e equações. O caso do “matemático-poeta” rendeu-lhe até uma matéria, no jornal “A Gazeta”, de autoria da jornalista Beth Rodrigues. Mas, independentemente das letras ou dos números, Marcos descobriu a Ufes, tendo sido estagiário da Editora Fundação Ceciliano Abel de Almeida, da Biblioteca Central. O convívio universitário fez com que ele tomasse conhecimento de algo que seria crucial em sua carreira de escritor: a oficina literária da professora e escritora Deny Gomes, que pode ser considerada como um marco na história da nossa Literatura, revelando os grandes autores daquela geração, dentre eles, Marcos Tavares. Muitos dos egressos dessa oficina se juntaram em torno do chamado “Grupo Letra”, outro importante movimento da nossa Literatura, tendo publicado uma revista, a “Revista Letra”, para a qual Tavares contribuiu dentre os anos de 1981 a 1987, enquanto circulou aquele veículo, junto aos escritores José Augusto de Carvalho, Luiz Busatto, Reinaldo Santos Neves e, novamente, os amigos Miguel e Oscar.

Em 1982, Tavares troca o curso de Matemática pelo de Economia e em 1983 recebe menção honrosa no Concurso “Geraldo Costa Alves” (FCAA-Ufes), com o seu conjunto de textos intitulado Vintecontos, publicado, mais tarde, em livro, com o título “No Escuro, Armados”. Cansado dos números, no entanto, o autor larga o curso de Economia e por conselho do amigo Renato Pacheco, presta concurso público para a Secretaria da Fazenda do Estado do Espírito Santo (Sefaz-ES), logrando êxito, para alegria dos amigos e desespero de seu pai que, comunista convicto, achava um absurdo o filho ir trabalhar para o Fisco! Marcos, assim, tornou-se Auditor Fiscal de Tributos Estaduais, tendo se radicado em Dores do Rio Preto, na divisa Espírito Santo – Minas Gerais, começando mais um importante capítulo de sua vida.

Foi em Dores do Rio Preto que Marcos Tavares fundou os jornais “Tribuna Riopretense” e “Força Jovem”, tendo, inclusive, se engajado na política, sendo o primeiro candidato eletivo e o primeiro presidente do Partido dos Trabalhadores (PT) naquele município. A entrada na política se deu na tentativa de melhorar as organizações. A opção pelo partido foi uma consequência natural da influência familiar, pois Marcos tinha pai comunista e tio político de esquerda, o deputado Benjamin Carvalho, do PCdoB, constituinte estadual de 1946 e primeiro deputado cassado do novo regime. Hoje, no entanto, o autor se autodenomina um apolítico.

Foi também em Dores do Rio Preto que Marcos, casando-se com a nativa Joana Bazani Valadão, criou duas de suas maiores obras, os filhos Renato, de 1991 e Vitor, de 1992. E foi em 1991 que Tavares, finalmente, concluiu a graduação, desta vez, em Letras, na Fafile, cidade de Carangolas, Minas Gerais. Enfim: o amor pela palavra venceu o amor pelos números... Em 2002, o autor vai para Guaçuí, ainda no interior do Espírito Santo, não sem promover várias oficinas literárias, concursos, debates, provando, ao contrário do que se imaginava, que a militância na Literatura continuava forte, de tal maneira que, nessas andanças pelo mundo das Letras e pelas perigosas rodovias do nosso Estado, o escritor tomou dois sustos: um, em 2006, indo para a Aliança Francesa de Vitória receber um prêmio pelo poema “Náufraga”, das mãos de Marilena Soneghet, quando, em Piúma, atingiu uma espécie de triangulo de concreto no caminho. O carro se desgovernou. O transtorno da troca de pneus o fez perder mais tempo. Andou 2 ou 3 km pra comprar mais um de dois 2 pneus danificados; apesar do atraso e das mãos sujas, Marcos chegou ao final do evento, mas não deixou de participar; o outro acidente foi em Apiacá, em 2007, quando, na véspera do dia do servidor público, pegou carona em uma carreta bi-trem, que tombou em uma curva. Mais uma vez a mão de Deus poupou o autor – e também o motorista – de uma tragédia, conferindo a Marcos Tavares mais um honroso título: o de sobrevivente!

Felizmente, o escritor retornou a Vitória, em 2007, para aqui estabelecer-se definitivamente em 2009. Longe do perigo das estradas e perto dos amigos e das Letras, Marcos se instalou no bairro de Santa Tereza, buscando reconstruir a vida e as suas reminiscências, mas, sobretudo, retomando o contato com a natureza, no lugar onde cultivou a maioria de suas obras. O saldo parcial dessa caminhada é, além do filho Vitório, esperado para breve com a noiva Andreia Passos Gardiman, várias participações, premiações e presenças nas coletâneas “Ofício da Palavra”, “Contos Capixabas”, “Palavras da Cidade”, “Escritos de Vitória”, “Poetas do Espírito Santo”, “34 Poetas Daqui Mesmo”, “Edital de Contos 2004”, “Clepsidra”, das revistas “Imã”, “Cuca” e “Letra”, do catálogo “Letras Capixabas em Arte”, da confreira Maria das Graças Silva Neves, além de duas obras de exclusiva autoria: “No escuro, armados”, e “Gemagem”.

"No escuro, armados", de 1987, é o livro de estreia do autor. Publicado pela Editora Anima e vencedor do concurso da Fundação Ceciliano Abel de Almeida na categoria contos, o livro é uma coletânea de escritos de 1976 a 1986. Além de um clássico da literatura capixaba, “No Escuro...” é daquelas obras feitas para serem descortinadas com cuidado, tamanho o emaranhado de signos que o autor nos propõe. A começar pela capa: um homem de terno e chapéu descendo uma escada e uma figura embaixo, que parece estar armada. Quem será ela? A mesma da contracapa, que acende (ou apaga) uma luz? E por que tanta obscuridade? O que será que eles escondem? Suas armas?

As dele, não sei, mas as de Marcos Tavares, com certeza, são as palavras. As duas partes do livro são sugestivas; "Babel Revisitada" é um verdadeiro amálgama de palavras, o que se permeia, obviamente, na obra toda, mas mais sugestivamente nessa parte do livro. O primeiro conto, "A Sete Chaves", que flerta com as Sagradas Escrituras traz, ao invés de uma profanação, sua própria liturgia, embaralhando em seu texto, o texto judaico-cristão e a mitologia grega, mostrando que mesmo a religião é um emaranhado de palavras, um oceano e daí Calypso, musa dos mares, de palavras, e dos encobertos (o escuro), divindade citada no conto. Pra mim, o texto diz tudo! Lembrando, aliás, que o autor tem nome de evangelista...

"O Detento S S O ou Vox Populi" é fantástico! Aquela história de brincar com os ditos populares, dando azo a novas interpretações, fez lembrar "Biografia de Hermínia Maria", de Amylton de Almeida, livro em cujo final o leitor encontra "exercícios", que, na verdade, são o "start" para o metatextual. Também me lembrei de "O Jogo de Amarelinha" de Cortázar. "D de Dente" e "Eden Idem" transbordam a veia cômica. A última, então, traz aquele elemento surpresa e, melhor, flerta com o teatro, outra frente de Marcos. E "Fábula Real" - que de real não tem nada, é o "retorno ad infinitum", uma espécie de "ritornello" aos textos iniciais, quando a confusão (ou melhor, a fusão) dos textos lexicais se dá.

A segunda parte do livro, "Os Outros", traz uma das minhas citações favoritas "l'enfer c'est les autres", de Sartre e, realmente, nesse pedaço eu senti um Marcos mais descritivo, verdadeiro cronista da vida real, mas, mais especificamente, do obscuro, sempre armado de seu jogo de palavras, que permeia sua literatura. Como em "No Escuro, Armados", que dá a tônica não apenas da parte, mas do livro todo. O final é peremptório: "permanecia o escuro" - e assim será, quando eu noto um Marcos demiurgo, escondido, mas extremamente crítico. As fábulas reais (essas sim, de verdade), estão em todos os lugares, como em "Praça da Esperança", "O Salto Mortal (um texto meio lispectoriano) e "Num domingo, dia de feira". "Meus meninos" me chamou muito a atenção, por tratar de incesto gay (pelo menos, à primeira vista, se entendi bem). Muito avançadinha pra 1987, o que faz do autor um precursor e também um corajoso, como no conto "De Florações", que trata da sexualidade sem pudores, mas com propriedade.

Que eu me lembre, o único texto em primeira pessoa dessa parte é "Revisão", em que o inferno deixa de ser os outros para ser o próprio personagem, numa subversão da equação sartriana (ou não - talvez apenas uma mudança de ótica). O conto sugere um texto autobiográfico, mas, longe de o ser, Marcos entra e sai do personagem, numa brincadeira lexical que não destoa do resto de toda a obra. Enfim: se o autor é ou não o escritor do livro, não se sabe, mas, nesse jogo de obscuridades em que nada é o que parece ser e a única certeza de que o leitor tem é de que ele se encontra no escuro, armado com o repertório lexical de Marcos Tavares.

“Gemagem” foi publicado em 2005, pela editora Flor e Cultura. São ao todo cinquenta poemas, escritos dentre os anos de 1976 a 2002, em manuscritos que o autor, mais uma vez, demoraria a levar ao lume, a despeito da insistência dos amigos Miguel Marvilla e Benilson Pereira. Mas, segundo o próprio Marcos Tavares, “fora necessário o magnetismo de uma Sandra Medeiros, mestra em Artes Gráficas”, para que o autor revelasse os seus “poemas tavários”. A começar pelo título, “Gemagem”, uma mistura de “Gema” com o sufixo “-agem”, de origem latina, que exprime a ideia de ação, de resultado, ou, em última análise, de “práxis”. E é esse, talvez, o primeiro recado que o autor queira nos passar, num jogo lexical que flerta com as vanguardas concretistas, de poema processo, da própria poesia práxis. A gema como símbolo da pedra preciosa, da riqueza, de sentidos e palavras ou o ovo, cuja foto não por acaso está aí estampada, como uma metáfora da vida por se fazer, encasulada, encapsulada, pronta para ser quebrada, ou mesmo da produção em série, das dores do parto e, em última análise, de um gemido, talvez do próprio autor-criador, capixaba da gema, da gema do ovo, como ele mesmo bota em epígrafe, citando o folclore do nosso Estado, tão caro nas suas reminiscências da mãe e da avó.

“Gemagem” é o que se chama de “obra em progresso”, pois a primeira parte foi concebida sob o pesado manto dos “Anos de Chumbo”, enquanto a segunda foi feita um contexto de democratização, de estabilidade e de preocupações mais holísticas. O livro pode ser dividido em dois blocos: o dos poemas que vão de 1976 até 1982 e os que vão de 1992 até 2002. No primeiro bloco, temos, aí, a presença do jovem poeta em formação, mas já bem cônscio do seu fazer poético; Marcos Tavares começou a burilar seu “Gemagem” ainda na adolescência, quando ainda morava na Rua Dalmácio Sodré, no sopé do morro de Santa Tereza, na capital. Era a época da “Tribuna Jovem” e do sonho em ser literato. Corriam os anos de 1975 e 1976 e o autor era, certamente, mais um dos influenciados pelo contexto concretista, liberdade de formas, de criação de uma nova linguagem, bem ao gosto de um Décio Pignatari, de um Ferreira Gullar ou de um Mário Chamie, este, influência direta do autor.

O principal poema dessa fase é, sem dúvida, “Gema Gemido”, não por acaso dedicado ao amigo Oscar Gama Filho. Nele, Tavares leva ao máximo as brincadeiras lexicais, como nos binômios “parto/perto”, “evola/afora”, “pôr do sol/pôr do ovo”, além da utilização precisa do meio da página; o tema da criação, aliás, permeia o livro, como em “A metafísica do ovo e da galinha”, não mera variação sobre o tema, mas uma verdadeira inovação ao velho esquema das trovas, das parlendas, ou quando o autor “brinca de Deus” em “Os Sete Dias”, recriando, mais uma vez, a sua própria liturgia – que se não é o princípio vindo do verbo? Mas, se é o poeta o criador ou, melhor dizendo, se cria ele mesmo a própria dor, também navega no amor, como em “Náufraga”, premiado poema, ou quando aproxima o Eros do Tanátos, a vida da morte, como em “Rês Morta, Rês Posta” ou em “De Composições Químicas”, que parece flertar com um certo Augusto dos Anjos.

Brincadeiras com a linguagem dão a tônica do livro. Marcos gosta de levar o poema até o seu limite, como no caso de “Antidaltônica”, uma brincadeira com o tema do olhar, “Poluição”, avançadíssima para época, pois versava sobre ecologia já em 1979 ou “Mundo versus Palavra”, escrita em 1980, época do curso de Matemática, em que o autor, empolgado com os números, cria um novo estilo: o poema-equação! “Miliciana” e “Salário” dão uma tônica mais política, comprovando que Marcos Tavares também tinha engajamento, a despeito de já ter sido até chamado de reacionário, o que seria um contrassenso, vistas a formação ideológica da família do autor e a militância política deste, só por preferir temas mais ligados ao coração, numa época em que o fazer poético tinha a obrigação de ser engajado. E é esse engajamento que sentimos ao ler “Da isenção do instante”, quando Tavares declara: “quero um poema da cor do sangue/ que corre em minhas veias latinas”, provando que Mário de Andrade estava certo (quando disse “há uma gota de sangue em cada poema”).

No segundo bloco, temos o poeta maduro, já conhecedor das artimanhas (ou seriam artes e manhas?) do seu eu-lírico. Aqui, vê-se a adoção de temas mais atuais, como quando o autor retoma algumas preocupações em “Ecológica”, escrito na época da Rio 92, mas dentro de um viés concretista, num contraponto com seu poema anterior, “Poluição”. “Ode ao chefe”, de 2002, traz como tema o assédio moral, a bajulação no trabalho, os problemas corporativos, numa época de downsizing, utilizando-se de jogos lexicais bem estruturados, que conseguem dar uma capa de comicidade a um tema tão sério, como se encontra em raros autores.

“Gemagem” e “No Escuro, Armados” são, em última análise, obras que dialogam entre si. Nelas, vemos, em prosa e verso, um autor de estilo bem definido, que usa e abusa dos jogos de palavras e das dicotomias, como as de vida e morte, claro e escuro, vazio e cheio, dos espaços da página, sem medo das possibilidades. Levando a língua portuguesa até o limite, Marcos Tavares pode ser considerado não apenas mais um expoente das fileiras de uma contemporânea poesia brasileira, mas também de uma contemporânea poesia brasileira feita no Espírito Santo, o que já faz de suas duas obras clássicos da nossa Literatura, devendo ser melhores lidas e estudadas. E se, como diria Fernando Pessoa, “o poeta é um fingidor”, Marcos se doa por inteiro, como no poema “Re/ Talhos”. Escrito em julho de 1979, consegue ser nostálgico e, ao mesmo tempo, premonitório, quando diz:

"As meninas choravam e choravam

e eu punha colírio nos olhos.

Há muito perdi meu coração

entre um amor e uma rua.

O relógio está quebrado.

O emprego, difícil.

Ainda acabo num hospício,

ou em uma Faculdade de Letras.

O mundo não é só palavra.

O mundo é redondo rodando.

E os homens continuam quadrados.

O pai queria-me engenheiro,

depois vieram outros filhos,

e fiquei sendo o mais velho.

Não aguento mais essa morte.

Tenho mesmo é vontade de viver.

Um dia hei de ser um homem".


Marcos Tavares: você não apenas tornou-se homem, mas uma figura ímpar da Literatura de nosso Estado, seja pela sua história, seja pela qualidade de suas obras. Honra ao mérito! Seja bem-vindo à Academia Espírito-Santense de Letras. Seja bem-vindo à imortalidade!


Muito obrigado.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

HUMANO, DEMASIADAMENTE HUMANO

Nunca estive no rol de fãs do ator Reynaldo Gianecchini, mas confesso que sou mais um dos que integram o coro de pessoas que torcem pelo seu restabelecimento. Fico imaginando receber um diagnóstico daquela temível doença que começa com “c” e termina com “r”, sobretudo para um rapaz tão jovem como ele. Mas, pensar que até mesmo um famoso galã de novela das oito pode, também, ser acometido por esse mal me faz ver que somos todos humanos e que tudo pode acontecer com qualquer um de nós, independente de quem sejamos. Inclusive com ele.

O mundo em que vivemos é um lugar pra lá de esquisito, não acha? Vendemos de tudo: felicidade, juventude, sexo, magreza... esses dias, fiquei espantado com um anúncio que vi atrás de um ônibus: era uma palestra que ensinava a gente a ser feliz. Juro! Mas, realmente, quem vê televisão todo dia precisa de um curso desses: são corpos esbeltos, “sarados”, uma beleza inalcançável, uma juventude eterna. Às mulheres, é proibido ter celulite. Aos homens, pelos no corpo, barriga de chope. Não existe velhice e tudo o que é velho deve ser descartado, inclusive as pessoas, de tal modo que ver um sujeito como o Gianecchini acometido de uma doença é, no mínimo, um contrassenso tal que espanta mais do que consterna. É como se ele “descesse ao mundo dos mortais” e se igualasse à gente que paga contas, que pega ônibus, que tem estria ou calvície. Ou, parafraseando Nietzsche, é mostrar o “humano, demasiadamente humano” do mundo da fantasia.

Acontece, no entanto, que mesmo um galã de novela das oito é, também, gente – e é essa a dimensão que se perde, quando se “coisifica” as pessoas. Ele também sente dor, também vai ao banheiro, também sente fome e sede, como qualquer um de nós. No entanto, a sanha por vender matéria é tamanha que até mesmo a doença do ator vira um produto, tal como ele também virou, desde que pôs os pés pela primeira vez num estúdio. Ao invés de imaginá-lo nas novelas, no entanto, fico pensando num rapaz triste, porém, esperançoso, deitado sobre uma maca, coberto por um fino lençol, com uma punção em uma das veias, recebendo soro e outros medicamentos, rodeado pela família. Só não consigo imaginar como estará ele se sentido, agora, ao ver tanta especulação sobre sua doença. O que será que ele pensa disso?

Acho que essa coisa toda em cima do Reynaldo Gianecchini serve pra nos mostrar que já passou da hora de nos reinventarmos, de reinventarmos as nossas demandas, esse nosso mundo em que vivemos. Sei que estou longe de ser algum teórico, mas creio que já chegamos a um impasse: ou nos olhamos como pessoas ou como produtos, mesmo, consumíveis, e, aí sim, os “cursos de felicidade” vão pipocar em todo Brasil. Tô fora! Nunca fiz um curso desses mas arrisco um conselho: felicidade não vem em caixinhas e, se você precisa de uma, então ligue o alerta vermelho, pois tem alguma coisa dando errado na sua vida. E a você, Gianecchini, vão aqui meus votos de um pronto restabelecimento, de um cara que não admira novelas, mas que, depois disso tudo, começa a admirar o ser humano que há dentro de você.

domingo, 31 de julho de 2011

INFÂNCIA 80 – PARTE I

“Mãe, ganhei um Atari!”. A frase, se fosse dita há uns vinte anos, não teria nada demais. No entanto, eu disse isso semana passada, para uma mãe desesperada em saber o que fazer com aquela velharia! Pros mais novinhos, explico: Atari foi um videogame que fez a cabeça da garotada nos anos 1980, contando com “diversão em 2 bits”. Ganhei um, com um montão de cartuchos, de um colega de trabalho que quase jogou tudo no lixo. Sacrilégio! Antes de jogar fora um brinquedo, por que não fazer uma criança feliz? Mesmo que ela tenha mais de trinta anos...

Esse papo de infância sempre me faz lembrar da minha amiga escritora Marilena Soneghet. Em 2000, ela nos brindou com um deliciosíssimo livro de crônicas, chamado “Trança”, em que ela fala de uma infância de bondinhos, quintais enormes e portões abertos. Confesso que, em princípio, fiquei com inveja. Mas, pensando melhor, a minha infância não foi assim tão ruim, não. Foi mais urbana, com certeza, mas de uma cidade que ainda mantinha seus ares de província. Lembro-me, por exemplo, de uma Praia de Camburi ainda banhável, com um calçadão de pedras portuguesas, imitação da carioquíssima Copacabana, só que em miniatura. A faixa de areia era tão baixa que havia até uns degrauzinhos pra gente descer, além de um quiosque aqui e outro acolá, feito de concreto e toras de madeira.

Na frente da praia, havia um restaurante chamado Pirata’s, feito em forma de navio, totalmente kitsch como, aliás, foi tanta coisa naquela década de 80. A fachada era em pedra, subindo até uma espécie de mastro estilizado, em que um boneco fantasiado de pirata reinava soberano, sempre com um braço na luneta, olhando não-sei-o-quê. Deveria ser a Vale, na época, Vale do Rio Doce, lá do fundão. Enfim, era o fino do brega, mas a gente achava o máximo, que nem a Bambina ou a Toscana, onde havia um aquário marinho gigante e um peixe agulha que gostava de brincar de se esconder da criançada. A gente nem comia, só queria “brincar” com o peixe, fazendo o favor de cutucar o aquário com dedinhos sujos de gordura, pra desespero dos donos.

Não havia Shopping, mas um aterro enorme na Enseada, o chamado “Aterro da Comdusa”. Uma vez, houve uma exposição chamada “Eva, a mulher gigante”, com um boneco de uma mulher dentro da qual podíamos entrar e ver como funcionava o corpo humano. Já falei sobre isso, aliás, em uma outra crônica – e também que a Terceira Ponte ainda não existia, só os pilares, apelidados pelos locais de “Ponte do Gato”, porque nem sequer entravam na água. Não consegui ver a Eva por dentro, umas das minhas “frustrações de infância”, mas segui com meus pais dias depois pela ponte, pronta, aliás, no final daquela década. Era o “trânsito pesado” da capital, numa época em que a gente gastava uns 15 minutos pra chegar ao centro (ou à “cidade”, como se falava naquela época) e que Vitória e Vila Velha tinham uma espécie de “rixazinha” pra saber qual era a melhor.

O centro de Vitória, aliás, era menos violento e mais freqüentado. A Mesbla, por exemplo, tinha uma lanchonete-restaurante no segundo pavimento, chiquérrima, em que a gente almoçava quando ia fazer compras, já que a cidade não tinha Shopping, mas “Centros Comerciais”, como o Centro da Praia ou o Boulevard, erguido onde havia uma antiga maternidade (muita gente, literalmente, “nasceu no Shopping” aqui em Vitória). Hoje, meus alunos nem sabem o que é Mesbla, pra meu desespero... ah, tinha também a lanchonete das Americanas. Quem “catou” uma bala de lá, fique tranquilo, o “furto” já prescreveu! Não havia câmeras de segurança, só seguranças, mesmo, e no mínimo descuido... em tempo: ainda há a lanchonete ali e, se eu não estou enganado, com as mesmas atendentes. Tem coisas que resistem ao tempo...

O centro também tinha muitos cinemas: Glória, São Luís, Jandaia, Paz... ainda peguei o finalzinho dessa época. Lembro-me muito bem do primeiro filme a que assisti no cinema: foi “ET”, de Steven Spielberg, no Glória, com papai. Fomos de ônibus pois o “trânsito” da cidade era muito “complicado” pra que a gente encontrasse vaga pro Chevette da família. Consigo ouvir a música-tema do longa e sua abertura até hoje. Era a magia da tela grande, pela primeira vez, se descortinando frente os olhos de um menino de uns cinco anos. Foi em 1984, pois, naquela época, filme chegava com atraso. As fitas eram poucas e até um lançamento chegar por aqui...

Por falar em fitas, a “tecnologia” da época era um caso a parte: primeiro, os eternos e enormes “bolachões” (ou LPs), depois, os walkman, com seus fones gigantes e fitas cassetes, que, quando velhas, chiavam horrores. O chique da época, aliás, era ter um toca-fitas bem grande no carro e depois sair com ele na mão, em uma bandeja. Depois, o videocassete. Era o máximo, a gente podia gravar desenhos animados, numa época em que piratear não estava no dicionário. A tecnologia magnética, muito mais rudimentar que a digital, fazia de qualquer um, um “ás” da pirataria. Por falar em tecnologia, o telefone a disco foi substituído pelo de botões, um avanço e, como era caro ter uma linha! Tinha gente que vendia terreno pra comprar! Quem não tinha, apelava pros “orelhões” e tinha de ser rápido, senão a ficha caía. E no sentido denotativo da coisa, mesmo.

Voltando aos filmes, já gravei muito filme de locadora e muitos que passavam nos únicos quatro canais disponíveis: Globo, SBT (antes, TVS), Cultura e Manchete, o que significava, todo mundo via os mesmos filmes e desenhos animados – e os comentavam no dia seguinte, na escola. Eu, que estudava de manhã, perdia alguns, mas sempre que podia, via os “Thundercats”, “Transformers”, “Comandos em Ação”, “Smurfs” e “He-man” (“She-ra” era coisa de menina). De tarde, tinha “A Nossa Turma”, “Pole Position”, “Cavalo de Fogo”, as séries japonesas (“Changeman” e “Jaspion”), a americana “Punky, a levada da breca” e o eterno “Chaves”. E, no fim de semana, tinha a musiquinha do “Show de Calouros” do Sílvio Santos, que significava que o domingo estava acabando. Que tristeza!

Ainda não conectei o meu Atari “novo”. Para um videogame dos anos 1980, é preciso ter uma televisão dos anos 1980. Acho que aqui em casa tem uma. Estou louco pra jogar Enduro, Pac Man, River Rade, Fantastic Voyage, dentre outros tantos cartuchos que me esperam. Se, naquela época, esses jogos tinham gosto de diversão, hoje, eles têm o gosto de reminiscência, de uma deliciosa época que não volta mais. Hoje, décadas depois, percebo que não preciso ficar com inveja de ninguém, pois minha infância foi tão boa quanto qualquer outra por um simples motivo: ser criança é sempre muito bom, não importa a década. Bom é brincar, ter coleguinhas e muitas histórias pra contar, anos depois, como eu estou fazendo agora. São tantas, aliás, que acho que merecem uma continuação. Continua na próxima nostalgia.

domingo, 10 de julho de 2011

13 DE JULHO, DIA MUNDIAL DO ROCK’N’ROLL

Nascido no sul dos Estados Unidos da América dentre as décadas de 1940 e 1950, o rock’n’roll é um estilo musical de origem negra, proveniente de uma mistura entre o blues, o jazz e a country music, além de outros, como o gospel, o folk e o boogie-woogie. Dono de várias vertentes desde sua criação, o rock, como também é conhecido, já passou pelo rockabilly, pelo twist, pelo metal, pelo hard rock, até chegar ao chamado “rock farofa”, “rock de Seattle”, nu metal e tantas outras quanto se pode conceber! Em 1985, o cantor e compositor irlandês Bob Geldof juntou algumas das maiores bandas de rock da década para um concerto humanitário em prol das vítimas da fome da Etiópia, chamado Live Aid. A data, 13 de julho. Estava criado o “Dia Mundial do Rock”.

Filho de um ex-músico profissional, tudo tenho a ver com o ritmo. Cresci ouvindo, basicamente, rock’n’roll. Não que outros estilos não chegassem até a minha casa, mas o que imperava em nossos “toca-discos” era uma mistura de Elvis Presley, The Beatles, Rolling Stones e os brasileiros da “Jovem Guarda” (Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléa e sua turma). Também havia espaço para posteriores como “Os Pholhas”, “Os Fevers”, “Os Incríveis Internacionais” e para a trinca da década de 1970: Black Sabbath, Deep Purple e Led Zeppelin. Tudo isso fez com que, confesso, não saiba até hoje quase nada (ou absolutamente nada) de MPB. Anda, vira e mexe, sou motivo de piada por conta disso...

A minha paixão, no entanto, foi o rock da década de 1980. Internacional, obviamente. Brasileiro? Nem pensar! No máximo um Barão Vermelho ou um Capital Inicial, mas, o que tocava no meu LBT – A20 (“cinco-em-um” da Sony, presente de aniversário do meu pai, super moderno para a época e risível para a geração iPod de hoje em dia) eram o bom, velho e eterno Iron Maiden; Metallica (antes da fase do Black Album); Scorpions, Gamma Ray, Saxon, Angra, Def Leppard, Judas Priest e, de vez em quando, um Sepultura e um Mötorhead. Às vezes fazia concessões ao som “leve” de Guns’n’Roses, Bon Jovi, Europe e outros. Nunca gostei da Grunge music, sendo sempre fiel ao som oitentista.

Todas essas influências fizeram com que eu me enveredasse para o rock. Eram os anos 1990 e eu dava meus passos, concomitantemente, na música e na literatura. Sempre achei que as duas artes se combinavam. Utilizei-me de alguns versos de Iron Maiden para a epígrafe do meu primeiro romance, “Asas de Cera”, de 1995. Foi um escândalo para a época e cheguei até a parar no Caderno 2 de “A Gazeta”, em uma matéria sobre a banda. Tinha, então, tenros 16 anos e duas fotos preferidas: uma, que virou a orelha do livro e que ficava na parte de baixo da minha estante; outra, em que empunhava uma guitarra Gianini Fender Stratocaster preta-e-branca, semelhante à de Eric Clapton e que ficava na parte de cima. Puro jogo de cena: nunca passei de três acordes!

Minha relação com a música, aliás, sempre foi interessante: consumidor contumaz dos CDs da extinta loja “Tarkus”, da Praia do Canto, numa época em que nem se pensava em pirataria, resolvi arriscar. Como disse, comecei com a guitarra, mas logo vi que as cordas não eram muito comigo; então, migrei para o teclado. Fui até razoavelmente bem, mas, logo percebi que tocar não era muito a minha praia. Resolvi, então, fazer canto, com a minha eterna mestra Elaine Rowena e soltar uns agudos à la Bruce Dickinson. Como me divertia! Foi nessa época a primeira banda, que trocava de nome toda a semana: Metropolis, Metropolitan, Vektor, até parar em Silver Spirit. Com esta última denominação, lançamos nosso risível primeiro e único CD demo. Mal sabíamos tocar e já começamos “compondo”. Tenho-o até hoje. Nem consigo ouvir minha voz! Será que isso é bom ou ruim?

Ainda tenho guardado o LBT-A20. As duas fotos também continuam comigo, mas a do escritor, agora, está em cima e a do “roqueiro”, embaixo. Isso não significa que não goste mais de rock, mas, minha relação com ele se resume a ouvi-lo no carro, indo para o trabalho. Confesso que meu dial anda dividido entre notícias e até outros ritmos, como a música pop e um pouco de rap e hip-hop. Já me peguei ouvindo Shakira e Beyoncé. Lady Gaga, jamais! Acho, no entanto, que isso marca algo tradicional ao estilo: as “antigas” gerações vão cedendo espaço para as novas e o amor ao ritmo vai passando de pai para filho, de irmão para irmão. Foi assim comigo. É por isso que sou completamente contra essa discussão sobre o fim do rock’n’roll. Enquanto houver um garoto idealista, como fui eu, o estilo continuará vivo. Rock não precisa de propaganda – ele mesmo se propagandeia. Por isso, neste 13 de julho, eu e toda a nação roqueira gritamos bem alto: long life to the rock’n’roll!