sábado, 5 de novembro de 2011

DISCURSO DE BOAS-VINDAS AO ACADÊMICO MARCOS TAVARES

DISCURSO DE BOAS-VINDAS AO ACADÊMICO MARCOS TAVARES

Excelentíssimo Senhor Doutor Gabriel Augusto de Mello Bittencourt, Presidente da Academia Espírito-Santense de Letras,

Excelentíssimo Senhor Álvaro José Silva, Primeiro Secretário da Academia Espírito-Santense de Letras,

Demais autoridades aqui presentes, colegas acadêmicos, senhoras e senhores,

Já dizia o escritor e pesquisador Reinaldo Santos Neves, em artigo de fôlego, que não me canso de citar, publicado no site “www.estacaocapixaba.com.br”, de nome “Mapa da Literatura Brasileira Feita no Espírito Santo”, que a década de 1980 foi a época áurea das Letras de nosso Estado. De fato, não sei por que, os anos 80 sempre exerceram um grande fascínio em mim. Talvez pelo fato de eu ter passado minha infância naquele período, talvez porque, escritor precoce que fui, me lancei na década seguinte, sob influência dos grandes autores daquele decênio, que até hoje merecem destaque na História das nossas Letras. Nomes como os de Francisco Grijó, de quem tive a honra de ser aluno, Paulo Sodré, Pedro Nunes, Waldo Mota, Bernadette Lyra, Fernando Tatagiba, Lacy Ribeiro, Álvaro José Silva, Flávio Sarlo, Adilson Vilaça, só para começar a citar – e parar por aqui, para que injustiças não sejam feitas! – foram uma grande influência para mim. E dentre todos esses autores, tenho a honra de, nesta noite, ter sido o escolhido para dar as boas-vindas a mais um filho dessa profícua geração. Seu nome: Marcos Tavares.

Conheci Marcos Tavares, primeiramente, por ouvir dizer. E bem, obviamente. Tímido pesquisador, porém grande entusiasta da nossa Literatura, eu já havia lido bastante coisa sobre e do autor, até ter a honra de entrevistá-lo em um programa de televisão que apresentava, com o inusitado nome de “Jovens Escritores”, no antigo canal DTV da RCA-Company, pioneiro na divulgação dos autores da terra. De início, espantei-me com os e-mails trocados. Longos, demasiadamente longos, sempre com jogos de palavras e neologismos, bem ao estilo do autor! Eram verdadeiras crônicas, o que, desde então, me davam uma pista do escritor que teria a honra de conhecer, conviver e, agora, apresentar a todos. Não foi difícil fazer amizade com a figura simpática, de jeito simples, mas de refinado conhecimento e humor afiado, bem ao espírito dos escritores de apurado senso estético.

Marcos Tavares é capixaba da gema: natural de Vitória/ES, nascido em 16 de janeiro de 1957, é o mais velho dos doze filhos do ferreiro, serralheiro, mecânico geral e garimpeiro José Tavares e da dona de casa Maria Luiza Silva Tavares. Passou sua infância na Vila Rubim, região do centro da cidade, morando com a numerosa família na chamada “Casa de Pedra”, residência cuja origem resta obscura até os dias de hoje. E talvez esse quê de mistério tenha dado o pontapé inicial na formação do rico imaginário do autor: indagado sobre como poderia haver ali tão incomum residência, Marcos contribuía para aumentar o número de “causos” em torno do assunto, dizendo que a casa tinha sido obra de frades franciscanos, de escravos, de que ela era malassombrada, de que havia morcegos, fantasmas e tantas outras histórias mirabolantes que lhe renderam o apelido de “O Conde”, talvez por conta do Conde Drácula, talvez pelo inesperado ar aristocrático, o que contrastava com a filosofia da família, visto que o senhor José Tavares era militante comunista e que seu senhorio, conhecido pela alcunha de Mestre Adolfo, só alugava a residência para quem comungasse na mesma cartilha! O garoto Marcos Tavares era tão ardiloso, que chegava a inventar cartas supostamente escritas por alguém do Primeiro Reinado, só para espantar algum possível desavisado! Ou mesmo mapas, que eram lançados em garrafas, embaixo da Ponte Seca, naquela época, banhada por um braço da baía de Vitória, com supostos tesouros por ele forjados.

Família de parcos recursos, os Tavares não contavam com uma biblioteca em casa. O amor pela ficção, portanto, começou com a oralidade, pelas histórias contadas ao futuro escritor pela mãe e pela avó, Dona Osvaldina Góes; e com uma infância tão rica em fantasia, não tardou o menino Marcos a se iniciar na leitura, começando, como toda boa criança, pelos quadrinhos, sobretudo os da antiga Editora Brasil Limitada, a EBAL: Super-Homem, Batman, Homem Aranha, Fantasma e tantos outros super-heróis eram indispensáveis itens de coleção, pois o menino, numa época em que trocar gibis estava no auge, sentia um ciúme danado das suas revistinhas, preferindo guardá-las, no baú de casa e da imaginação. Para os livros, foi um pulo: João Cabral de Mello Neto, Carlos Drummond de Andrade, critica literária. Segundo ele mesmo diz, “é um leitor compulsivo, lendo tudo o que estava em sua frente. Até bula de remédio”...

Esse amor pelos livros fez com que o garoto Marcos aprendesse a ler rapidamente, antes mesmo de todos os coleguinhas, tanto que na primeira série ajudava a professora na alfabetização. Era uma espécie de monitor de quem tinha mais dificuldade. Os colegas diziam que aprendiam mais com ele do que com a professora. Obviamente, nosso então futuro acadêmico já lia jornais em alto e bom tom, só para angariar os aplausos dos possíveis ouvintes. Dentre eles estava a madrinha de seu primo, um relapso na escola! Sempre envergonhada do afilhado e dada à semelhança dos garotos, a madrinha, que também era professora, dizia que seu afilhado era Marcos e, só para exibi-lo, punha-o para ler textos de jornais, cada vez mais difíceis. Ainda bem que o menino jamais a decepcionou!

Aos 16 anos, Marcos Tavares transferiu-se com a família para o bairro de Santa Tereza. Corria o ano de 1973 quando, afinal, munido de grande imaginário e daquele ímpeto que só mesmo os prodígios têm, Marcos deu os primeiros passos na sua bem sucedida carreira literária. Foi publicando poemas no suplemento “Tribuna Jovem”, do jornal “A Tribuna” que o jovem poeta, então restrito aos meios escolares, começa a se tornar conhecido. E foi ali, nos bancos da escola, que Tavares conhece outro poeta, Miguel Marvilla, de quem se tornaria amigo. Dizem que eles se conheceram por meio de suas poesias, passadas de mão em mão pelos colegas. Um dia, os amigos estavam apaixonados pela mesma garota. Escreviam poesias e mais poesias quando, de repente, ao ver a menina passar, Miguel pulou um muro, pegou uma rosa e ofereceu à jovem amada. Marcos ficou, mesmo, só na poesia...

Mais tarde, o jovem Marcos trava amizade com outro poeta e, como de hábito, de forma inusitada: foi com Oscar Gama Filho, na fila do exército, no alistamento do 38º Batalhão de Infantaria. O que uniu os dois? A Literatura, é claro! Enquanto esperavam para se apresentar, Oscar percebeu que Tavares lia “De Sélesis da Danações”, de Carlos Nejar. Este era o código para selar uma amizade de muitos anos, além de uma parceria de sucesso. O novo amigo convidou-o para ver a exposição “Varais de Edifícios”, na Aliança Francesa. Poemas de Oscar e desenhos de Eugenio Herkenhoff. Ficaram assim, Oscar e Marcos, muito ligados pela Literatura, tanto, que Marcos até participou de uma das peças do amigo, “Estação Treblinkla-Garden”, de 1978 a 1980, fazendo o papel de... uma mulher grávida (e da Cultura Capixaba)! Foi num festival de Teatro Experimental, no Carlos Gomes. Era época de grande efervescência cultural, com a Ditadura dando seus últimos suspiros, de um lado, e jovens estudantes ávidos em se expressar, do outro. A peça, uma tragicomédia, discutia, dentre outras coisas, as relações de poder. Foi nessa época que Tavares travou conhecimento com poetas militantes de sua geração, tais como Gilson Soares, Benilson Pereira, Ivaldo Venturini e José de Anchieta Gonzaga, presentes nas reuniões da Aliança Francesa.

O escritor viva os agitados anos 1980 no auge de sua juventude. A pena era incansável, de tal arte que o amigo Miguel Marvilla dizia que Tavares só falava de Literatura. Parecia um “lunático”, segundo o próprio Miguel, que lhe dedicou o poemeto “Ofício”: “imprescindível o uso da janela:/é seu ofício de pretender a lua”. E parecia ser verdade, pois até sobre ufologia Marcos Tavares já escreveu, tendo publicado sobre o assunto numa revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, por insistência de outro amigo, Renato Pacheco. Mas era hora de pôr os pés no chão e arrumar uma carreira. Mas... qual o destino para alguém que já fora aprendiz de tipógrafo, encanador, auxiliar de oficinas, cobrador de promissórias, estoquista, estagiário em empresas públicas e professor substituto?

Para espanto de todos, Marcos optou, no vestibular, para o curso de Matemática! Foi em 1980, quando o jovem poeta resolveu buscar a poesia por detrás dos algarismos, fórmulas e equações. O caso do “matemático-poeta” rendeu-lhe até uma matéria, no jornal “A Gazeta”, de autoria da jornalista Beth Rodrigues. Mas, independentemente das letras ou dos números, Marcos descobriu a Ufes, tendo sido estagiário da Editora Fundação Ceciliano Abel de Almeida, da Biblioteca Central. O convívio universitário fez com que ele tomasse conhecimento de algo que seria crucial em sua carreira de escritor: a oficina literária da professora e escritora Deny Gomes, que pode ser considerada como um marco na história da nossa Literatura, revelando os grandes autores daquela geração, dentre eles, Marcos Tavares. Muitos dos egressos dessa oficina se juntaram em torno do chamado “Grupo Letra”, outro importante movimento da nossa Literatura, tendo publicado uma revista, a “Revista Letra”, para a qual Tavares contribuiu dentre os anos de 1981 a 1987, enquanto circulou aquele veículo, junto aos escritores José Augusto de Carvalho, Luiz Busatto, Reinaldo Santos Neves e, novamente, os amigos Miguel e Oscar.

Em 1982, Tavares troca o curso de Matemática pelo de Economia e em 1983 recebe menção honrosa no Concurso “Geraldo Costa Alves” (FCAA-Ufes), com o seu conjunto de textos intitulado Vintecontos, publicado, mais tarde, em livro, com o título “No Escuro, Armados”. Cansado dos números, no entanto, o autor larga o curso de Economia e por conselho do amigo Renato Pacheco, presta concurso público para a Secretaria da Fazenda do Estado do Espírito Santo (Sefaz-ES), logrando êxito, para alegria dos amigos e desespero de seu pai que, comunista convicto, achava um absurdo o filho ir trabalhar para o Fisco! Marcos, assim, tornou-se Auditor Fiscal de Tributos Estaduais, tendo se radicado em Dores do Rio Preto, na divisa Espírito Santo – Minas Gerais, começando mais um importante capítulo de sua vida.

Foi em Dores do Rio Preto que Marcos Tavares fundou os jornais “Tribuna Riopretense” e “Força Jovem”, tendo, inclusive, se engajado na política, sendo o primeiro candidato eletivo e o primeiro presidente do Partido dos Trabalhadores (PT) naquele município. A entrada na política se deu na tentativa de melhorar as organizações. A opção pelo partido foi uma consequência natural da influência familiar, pois Marcos tinha pai comunista e tio político de esquerda, o deputado Benjamin Carvalho, do PCdoB, constituinte estadual de 1946 e primeiro deputado cassado do novo regime. Hoje, no entanto, o autor se autodenomina um apolítico.

Foi também em Dores do Rio Preto que Marcos, casando-se com a nativa Joana Bazani Valadão, criou duas de suas maiores obras, os filhos Renato, de 1991 e Vitor, de 1992. E foi em 1991 que Tavares, finalmente, concluiu a graduação, desta vez, em Letras, na Fafile, cidade de Carangolas, Minas Gerais. Enfim: o amor pela palavra venceu o amor pelos números... Em 2002, o autor vai para Guaçuí, ainda no interior do Espírito Santo, não sem promover várias oficinas literárias, concursos, debates, provando, ao contrário do que se imaginava, que a militância na Literatura continuava forte, de tal maneira que, nessas andanças pelo mundo das Letras e pelas perigosas rodovias do nosso Estado, o escritor tomou dois sustos: um, em 2006, indo para a Aliança Francesa de Vitória receber um prêmio pelo poema “Náufraga”, das mãos de Marilena Soneghet, quando, em Piúma, atingiu uma espécie de triangulo de concreto no caminho. O carro se desgovernou. O transtorno da troca de pneus o fez perder mais tempo. Andou 2 ou 3 km pra comprar mais um de dois 2 pneus danificados; apesar do atraso e das mãos sujas, Marcos chegou ao final do evento, mas não deixou de participar; o outro acidente foi em Apiacá, em 2007, quando, na véspera do dia do servidor público, pegou carona em uma carreta bi-trem, que tombou em uma curva. Mais uma vez a mão de Deus poupou o autor – e também o motorista – de uma tragédia, conferindo a Marcos Tavares mais um honroso título: o de sobrevivente!

Felizmente, o escritor retornou a Vitória, em 2007, para aqui estabelecer-se definitivamente em 2009. Longe do perigo das estradas e perto dos amigos e das Letras, Marcos se instalou no bairro de Santa Tereza, buscando reconstruir a vida e as suas reminiscências, mas, sobretudo, retomando o contato com a natureza, no lugar onde cultivou a maioria de suas obras. O saldo parcial dessa caminhada é, além do filho Vitório, esperado para breve com a noiva Andreia Passos Gardiman, várias participações, premiações e presenças nas coletâneas “Ofício da Palavra”, “Contos Capixabas”, “Palavras da Cidade”, “Escritos de Vitória”, “Poetas do Espírito Santo”, “34 Poetas Daqui Mesmo”, “Edital de Contos 2004”, “Clepsidra”, das revistas “Imã”, “Cuca” e “Letra”, do catálogo “Letras Capixabas em Arte”, da confreira Maria das Graças Silva Neves, além de duas obras de exclusiva autoria: “No escuro, armados”, e “Gemagem”.

"No escuro, armados", de 1987, é o livro de estreia do autor. Publicado pela Editora Anima e vencedor do concurso da Fundação Ceciliano Abel de Almeida na categoria contos, o livro é uma coletânea de escritos de 1976 a 1986. Além de um clássico da literatura capixaba, “No Escuro...” é daquelas obras feitas para serem descortinadas com cuidado, tamanho o emaranhado de signos que o autor nos propõe. A começar pela capa: um homem de terno e chapéu descendo uma escada e uma figura embaixo, que parece estar armada. Quem será ela? A mesma da contracapa, que acende (ou apaga) uma luz? E por que tanta obscuridade? O que será que eles escondem? Suas armas?

As dele, não sei, mas as de Marcos Tavares, com certeza, são as palavras. As duas partes do livro são sugestivas; "Babel Revisitada" é um verdadeiro amálgama de palavras, o que se permeia, obviamente, na obra toda, mas mais sugestivamente nessa parte do livro. O primeiro conto, "A Sete Chaves", que flerta com as Sagradas Escrituras traz, ao invés de uma profanação, sua própria liturgia, embaralhando em seu texto, o texto judaico-cristão e a mitologia grega, mostrando que mesmo a religião é um emaranhado de palavras, um oceano e daí Calypso, musa dos mares, de palavras, e dos encobertos (o escuro), divindade citada no conto. Pra mim, o texto diz tudo! Lembrando, aliás, que o autor tem nome de evangelista...

"O Detento S S O ou Vox Populi" é fantástico! Aquela história de brincar com os ditos populares, dando azo a novas interpretações, fez lembrar "Biografia de Hermínia Maria", de Amylton de Almeida, livro em cujo final o leitor encontra "exercícios", que, na verdade, são o "start" para o metatextual. Também me lembrei de "O Jogo de Amarelinha" de Cortázar. "D de Dente" e "Eden Idem" transbordam a veia cômica. A última, então, traz aquele elemento surpresa e, melhor, flerta com o teatro, outra frente de Marcos. E "Fábula Real" - que de real não tem nada, é o "retorno ad infinitum", uma espécie de "ritornello" aos textos iniciais, quando a confusão (ou melhor, a fusão) dos textos lexicais se dá.

A segunda parte do livro, "Os Outros", traz uma das minhas citações favoritas "l'enfer c'est les autres", de Sartre e, realmente, nesse pedaço eu senti um Marcos mais descritivo, verdadeiro cronista da vida real, mas, mais especificamente, do obscuro, sempre armado de seu jogo de palavras, que permeia sua literatura. Como em "No Escuro, Armados", que dá a tônica não apenas da parte, mas do livro todo. O final é peremptório: "permanecia o escuro" - e assim será, quando eu noto um Marcos demiurgo, escondido, mas extremamente crítico. As fábulas reais (essas sim, de verdade), estão em todos os lugares, como em "Praça da Esperança", "O Salto Mortal (um texto meio lispectoriano) e "Num domingo, dia de feira". "Meus meninos" me chamou muito a atenção, por tratar de incesto gay (pelo menos, à primeira vista, se entendi bem). Muito avançadinha pra 1987, o que faz do autor um precursor e também um corajoso, como no conto "De Florações", que trata da sexualidade sem pudores, mas com propriedade.

Que eu me lembre, o único texto em primeira pessoa dessa parte é "Revisão", em que o inferno deixa de ser os outros para ser o próprio personagem, numa subversão da equação sartriana (ou não - talvez apenas uma mudança de ótica). O conto sugere um texto autobiográfico, mas, longe de o ser, Marcos entra e sai do personagem, numa brincadeira lexical que não destoa do resto de toda a obra. Enfim: se o autor é ou não o escritor do livro, não se sabe, mas, nesse jogo de obscuridades em que nada é o que parece ser e a única certeza de que o leitor tem é de que ele se encontra no escuro, armado com o repertório lexical de Marcos Tavares.

“Gemagem” foi publicado em 2005, pela editora Flor e Cultura. São ao todo cinquenta poemas, escritos dentre os anos de 1976 a 2002, em manuscritos que o autor, mais uma vez, demoraria a levar ao lume, a despeito da insistência dos amigos Miguel Marvilla e Benilson Pereira. Mas, segundo o próprio Marcos Tavares, “fora necessário o magnetismo de uma Sandra Medeiros, mestra em Artes Gráficas”, para que o autor revelasse os seus “poemas tavários”. A começar pelo título, “Gemagem”, uma mistura de “Gema” com o sufixo “-agem”, de origem latina, que exprime a ideia de ação, de resultado, ou, em última análise, de “práxis”. E é esse, talvez, o primeiro recado que o autor queira nos passar, num jogo lexical que flerta com as vanguardas concretistas, de poema processo, da própria poesia práxis. A gema como símbolo da pedra preciosa, da riqueza, de sentidos e palavras ou o ovo, cuja foto não por acaso está aí estampada, como uma metáfora da vida por se fazer, encasulada, encapsulada, pronta para ser quebrada, ou mesmo da produção em série, das dores do parto e, em última análise, de um gemido, talvez do próprio autor-criador, capixaba da gema, da gema do ovo, como ele mesmo bota em epígrafe, citando o folclore do nosso Estado, tão caro nas suas reminiscências da mãe e da avó.

“Gemagem” é o que se chama de “obra em progresso”, pois a primeira parte foi concebida sob o pesado manto dos “Anos de Chumbo”, enquanto a segunda foi feita um contexto de democratização, de estabilidade e de preocupações mais holísticas. O livro pode ser dividido em dois blocos: o dos poemas que vão de 1976 até 1982 e os que vão de 1992 até 2002. No primeiro bloco, temos, aí, a presença do jovem poeta em formação, mas já bem cônscio do seu fazer poético; Marcos Tavares começou a burilar seu “Gemagem” ainda na adolescência, quando ainda morava na Rua Dalmácio Sodré, no sopé do morro de Santa Tereza, na capital. Era a época da “Tribuna Jovem” e do sonho em ser literato. Corriam os anos de 1975 e 1976 e o autor era, certamente, mais um dos influenciados pelo contexto concretista, liberdade de formas, de criação de uma nova linguagem, bem ao gosto de um Décio Pignatari, de um Ferreira Gullar ou de um Mário Chamie, este, influência direta do autor.

O principal poema dessa fase é, sem dúvida, “Gema Gemido”, não por acaso dedicado ao amigo Oscar Gama Filho. Nele, Tavares leva ao máximo as brincadeiras lexicais, como nos binômios “parto/perto”, “evola/afora”, “pôr do sol/pôr do ovo”, além da utilização precisa do meio da página; o tema da criação, aliás, permeia o livro, como em “A metafísica do ovo e da galinha”, não mera variação sobre o tema, mas uma verdadeira inovação ao velho esquema das trovas, das parlendas, ou quando o autor “brinca de Deus” em “Os Sete Dias”, recriando, mais uma vez, a sua própria liturgia – que se não é o princípio vindo do verbo? Mas, se é o poeta o criador ou, melhor dizendo, se cria ele mesmo a própria dor, também navega no amor, como em “Náufraga”, premiado poema, ou quando aproxima o Eros do Tanátos, a vida da morte, como em “Rês Morta, Rês Posta” ou em “De Composições Químicas”, que parece flertar com um certo Augusto dos Anjos.

Brincadeiras com a linguagem dão a tônica do livro. Marcos gosta de levar o poema até o seu limite, como no caso de “Antidaltônica”, uma brincadeira com o tema do olhar, “Poluição”, avançadíssima para época, pois versava sobre ecologia já em 1979 ou “Mundo versus Palavra”, escrita em 1980, época do curso de Matemática, em que o autor, empolgado com os números, cria um novo estilo: o poema-equação! “Miliciana” e “Salário” dão uma tônica mais política, comprovando que Marcos Tavares também tinha engajamento, a despeito de já ter sido até chamado de reacionário, o que seria um contrassenso, vistas a formação ideológica da família do autor e a militância política deste, só por preferir temas mais ligados ao coração, numa época em que o fazer poético tinha a obrigação de ser engajado. E é esse engajamento que sentimos ao ler “Da isenção do instante”, quando Tavares declara: “quero um poema da cor do sangue/ que corre em minhas veias latinas”, provando que Mário de Andrade estava certo (quando disse “há uma gota de sangue em cada poema”).

No segundo bloco, temos o poeta maduro, já conhecedor das artimanhas (ou seriam artes e manhas?) do seu eu-lírico. Aqui, vê-se a adoção de temas mais atuais, como quando o autor retoma algumas preocupações em “Ecológica”, escrito na época da Rio 92, mas dentro de um viés concretista, num contraponto com seu poema anterior, “Poluição”. “Ode ao chefe”, de 2002, traz como tema o assédio moral, a bajulação no trabalho, os problemas corporativos, numa época de downsizing, utilizando-se de jogos lexicais bem estruturados, que conseguem dar uma capa de comicidade a um tema tão sério, como se encontra em raros autores.

“Gemagem” e “No Escuro, Armados” são, em última análise, obras que dialogam entre si. Nelas, vemos, em prosa e verso, um autor de estilo bem definido, que usa e abusa dos jogos de palavras e das dicotomias, como as de vida e morte, claro e escuro, vazio e cheio, dos espaços da página, sem medo das possibilidades. Levando a língua portuguesa até o limite, Marcos Tavares pode ser considerado não apenas mais um expoente das fileiras de uma contemporânea poesia brasileira, mas também de uma contemporânea poesia brasileira feita no Espírito Santo, o que já faz de suas duas obras clássicos da nossa Literatura, devendo ser melhores lidas e estudadas. E se, como diria Fernando Pessoa, “o poeta é um fingidor”, Marcos se doa por inteiro, como no poema “Re/ Talhos”. Escrito em julho de 1979, consegue ser nostálgico e, ao mesmo tempo, premonitório, quando diz:

"As meninas choravam e choravam

e eu punha colírio nos olhos.

Há muito perdi meu coração

entre um amor e uma rua.

O relógio está quebrado.

O emprego, difícil.

Ainda acabo num hospício,

ou em uma Faculdade de Letras.

O mundo não é só palavra.

O mundo é redondo rodando.

E os homens continuam quadrados.

O pai queria-me engenheiro,

depois vieram outros filhos,

e fiquei sendo o mais velho.

Não aguento mais essa morte.

Tenho mesmo é vontade de viver.

Um dia hei de ser um homem".


Marcos Tavares: você não apenas tornou-se homem, mas uma figura ímpar da Literatura de nosso Estado, seja pela sua história, seja pela qualidade de suas obras. Honra ao mérito! Seja bem-vindo à Academia Espírito-Santense de Letras. Seja bem-vindo à imortalidade!


Muito obrigado.

Um comentário:

  1. Anax, fiquei emocionada ao ouvir pessoalmente este discurso. Além de ser sincero, é uma obra literária perfeita. O Marcos é exatamente isso tudo que você nos mostrou. Minha admiração por você é pra sempre... Grande abraço, Sonia

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