domingo, 29 de agosto de 2010

NÃO SEI... SÓ SEI QUE FOI ASSIM

Mitomania. Do grego, compulsão para inventar histórias. O chamado “mitômano”, isto é, aquele que sofre desse mal, não é exatamente um mentiroso, mas alguém de mente fértil, capaz de criar cenários e, pior, acreditar neles. Dizem que o escritor e pensador francês André Malraux era um deles e que muitas de suas aventuras não passavam de meras “cascatas”. Deve ser coisa de escritor, mesmo, porque Ariano Suassuna nos presenteou com Chicó e João Grilo, personagens do festejado “O Auto da Compadecida” com seu clássico bordão “não sei... só sei que foi assim!” O problema é quando a mitomania extrapola a fronteira da ficção e cai no mundo real. É o que acontece com uma amiga da família, “figuraça” de marca maior e que, um dia desses, me saiu com uma história que faria até Suassuna ficar de cabelo em pé!

Diz ela que meu avô, amigo dela, tinha mania de “matar” as pessoas. Não, não era matar de morte matada, era na imaginação mesmo. O velho, que já andava meio pra lá de Bagdá, vivia criando obituários na cabeça. Era só deixar de ver um amigo e pronto: o infeliz tinha batido as botas, certamente! Foi assim com um deles, “desaparecido” há muito tempo e que, com certeza, já devia estar na “cidade dos pés juntos”. Com medo de a coisa ser verdade e sem ter ninguém melhor para averiguar o fato, vovô cometeu outro equívoco: mandar essa amiga mitômana “suntar” na casa da “viúva” e saber se o amigo tinha virado “inquilino do subsolo”, mesmo, ou não.

A amiga chegou à casa da “viúva” meio ressabiada, com aquele monte de “não-me-toques” de quem acabou de “sair de um enterro”. Foi se achegando de mansinho, sentando no sofá e, com ar constrito, as mãos dadas à da “mulher do morto”, começou a tecer o discurso padrão: “é mesmo, Dona Fulana, eu sei que é meio difícil, mas a gente se conforma, eu também perdi um marido muito cedo...” sem sequer perceber o ar de interrogação da mulher e a presença do “falecido”, que chegou da rua e gritou à esposa, bem alto: “cadê meu pijama que eu quero dormir?”. Como no interior morto usa mesmo é “mortalha”, a amiga, desesperada, concluiu que o falecido tinha voltado do Além. Desfez-se da mão da mulher e, sem pensar duas vezes, pulou a mesa de centro da sala e pôs-se até o quintal. Aí, imbuída do melhor espírito olímpico, tomou distância e, num pique só, pulou um muro de quase dois metros, sem o menor esforço, chegando desesperada à casa do velho, pedindo a vovô pelo amor de Deus um copo d’água porque o falecido tinha voltado!

Não dá pra saber se essa história é verdadeira ou não. De tanto “matar” os outros, vovô acabou morrendo primeiro – e, dessa vez, de verdade, porque eu estava lá no enterro e vi. Ficou só a palavra da amiga, que jura pela alma do velho que tudo isso foi verdade. De fato, com adrenalina a gente faz coisas que até Deus duvida, mas, sei lá... será que um simples “fantasminha” faria uma mulher fora de forma correr e pular tanto assim? Tenho cá minhas dúvidas, mas, convenhamos, até eu, como escritor, tenho minha parcela de mitômano. Em todo caso, só vovô mesmo pra confirmar e, apesar de gostar muito dele, de fantasma, tô fora! Se é verdade ou não, deixa isso pra lá. É como diria Chicó: não sei... só sei que foi assim!

29 de agosto de 2010


Anaximandro Amorim
Escritor e membro da Academia Espírito-Santense de Letras
Cadeira 40

2 comentários:

  1. Olá Anax, que figura essa hem... pena que quando morrem pessoas criativas e inventivas, morrem muitas histórias e invenções junto com elas... Eu chorei no dia em que o Tim Morreu, porque senti o peso de tantas musicas não cantadas com aquela voz maravilhosa e lindo... enfim...
    Adorei o texto
    Um abração
    renata

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  2. Anax, se você é mitômano, não sei... só sei que foi assim que você escreveu essa história do além e eu me diverti muito!

    Abraços,
    Edson Lobo

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