domingo, 15 de agosto de 2010

O TREM DE MINAS

Reza a lenda que Minas Gerais queria tomar para si o Espírito Santo. Talvez seja porque lhes falta água salgada ou por qualquer outro motivo que desconheço. Só se for! O fato é que todo mundo aqui tinha medo de um tal trem que chegaria apinhado de mineiros, armados até os dentes, e que tomaria de assalto o Estado, realizando a tão temível anexação. Para os dias de hoje, uma história como essa é, no mínimo, risível: como um grupo de pessoas, dentro de um trem de ferro, poderia causar tamanho “estrago”? Mas, numa época em que não havia tanta violência, nem tantas armas, nem Orkut, nem Facebook e nem Twitter, havia quem acreditasse piamente que a coisa pudesse acontecer. Inclusive na minha família...

Meu bisavô vivia em uma casa muito grande no município de Fundão, hoje parte da Região Metropolitana de Vitória, mas, naquela época, um típico “fim-de-mundo”. Viúvo, pai de nove filhos e deficiente físico, ele morava com a parentada, que se revezava na “lida” e ficava de sentinela para afugentar quem quer que fosse. O Estado poderia até ser tomado, mas Fundão não seria! E todos, parentes e amigos estavam armados até os dentes. Acontece, no entanto, que, em qualquer lugar, sempre há os incrédulos de plantão – e na minha família não poderia ser diferente. Eles eram meus tios-avôs Tassiano, Orly e Mário. Cansados de ouvir a mesma arenga sobre o tal “trem de Minas”, eles resolveram botar em prática um plano: havia um bambuzal perto da casa em que eles moravam que, se aquecido, produziria um fogo considerável. No mais, dizem que bambu estala enquanto queima, o que causaria um ruído muito parecido com tiros de pistola. Seria perfeito para simular um falso “ataque” e, literalmente, ver a coisa toda “pegar fogo”.

Foi em uma noite de lua cheia, enquanto todos se reuniam na frente do casarão para contar os “causos” que os três moleques, sorrateiramente, correram até o local com uma lata de querosene roubada da cozinha e algo para combustão. Puseram fogo no primeiro bambu que acharam pela frente. Foi o necessário para um estalo bem dado, que fez alguém arregalar os olhos e gritar: “os mineiros chegaram”! Todos correram, inclusive meus três tios-avôs, mas para bem longe, para ver a “bravura” daqueles homens: houve quem desse trombada no outro, quem desmaiasse, quem ficasse preso no arame da cerca e quem se pusesse a rezar, encomendando a alma ao primeiro anjo da guarda que aparecesse. Os mais “corajosos” ainda conseguiram pegar uma arma qualquer e dar uns tiros para cima, na tentativa de “afugentar algum mineiro”. E meus tios, do alto de suas adolescências, riam alto, escondidos em um lugar bem seguro, pois eles sabiam que a farsa seria desmascarada em breve e que a sova seria daquelas – mas que valeria à pena, só para ver aquele negócio de “trem de Minas” acabar de uma vez por todas!

O tempo passou e o tal “trem de Minas” jamais aconteceu. Aliás, o único “trem” de Minas que eu conheço é como eles chamam a palavra “coisa” e “coisa” é o nome do “trem” por lá. Há o trem que liga Vitória a Minas, bonito e com um passeio muito bucólico por sinal, o que causou inverso do que meus parentes temiam: a invasão capixaba em Minas. E há também a autêntica “invasão dos mineiros”, mas sempre nos verões: tem mineiro que conhece mais o nosso litoral do que muito capixaba! Outros, por seu turno, preferem outra forma de “invasão”, desta vez, mais inteligente: acabam se fixando por aqui. Eu mesmo me considero um “mineirixaba”: nascido em solo Espírito-Santense, mas filho e neto de mineiras. Afinal, quem nesse Estado não gosta de uma moqueca e um belo pão-de-queijo? Tem até um refrigerante 100% capixaba que se chama “Uai”. Tudo isso só mostra o óbvio: que não é necessário tomar de assalto o Espírito Santo, pois a gente acolhe todo mundo. Afinal, “trem bão” a gente só encontra aqui, sô!

15 de agosto de 2010.

Anaximandro Amorim,
Escritor e membro da Academia Espírito-Santense de Letras
(cadeira 40)

5 comentários:

  1. Adoro este tipo de cronica gostosa! Eita trem bão, sô! (daqui e de lá) As historias de mineiros e capixabas me encantam, Anax. E essa sua fez-me rir logo cedo. - Parabéns pelo blog, já estou seguindo você. Você viu que legal, amigo? Temos o mesmo número de cadeira na Academia (eu, 40 na Feminina e você 40 na AESL. Que bom!) - Boa semana!

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  2. Contar bons "causos" com graça e elegância é prazer que diverte. Isso você fez muito bem nessa crônica. A boa leitura é como um bom vinho: magia dos deuses!
    Parabéns!

    Edson Lobo

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  3. Uma boa leitura alegra a alma e o coração. Amo crônicas e a sua está especialmente leve e agradável! Já estou aguardando a próxima.rs
    Parabéns!

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  4. Olá Anax, tudo bom?
    conheci ontem seu companheiro de academia, o Mattedi. tudo bem?
    Adorei seu texo, de muita leveza... eu amo a gente minas e quijo tambem, acredito que o trem é essa ponte móvel que permite sempre atroca com os capixabas
    abraços
    renata

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  5. Caro Anaximandro,


    Em primeiro lugar, gostaria de dizer que ainda não havia aparecido por aqui, para ler esta outra crônica que você me indicou, porque andei ocupado com uns estudos aqui e não havia ainda entrado na comunidade.

    Agora, ao terminar a leitura, sinto-me frustrado. Frustrado por não ter lido este texto antes, meu amigo. Que crônica maravilhosa, "véi" (para usar uma gíria muito popular nas minhas Minas Gerais)! Lendo essa história, fiquei me perguntando quando é que verei um belo romance memoralista do meu novo e caríssimo amigo, Anaximandro.

    Cara, eu não diria isto se realmente não achasse que sua escrita tem o poder de cativar leitores, de empolgá-los, de fazê-los vivenciar cada cena descrita. Isso, meu amigo, é talento!

    Ah, sim! Eu já viajei no trem que faz o percurso Beagá-Vitória (embora, na ocasião, eu o tivesse tomado em Gov. Valadares). Mas, enfim, ler sua crônica me lembrou de saudosos dias de minha adolescência. Também bateu uma saudadezinha de casa (já que há dois anos vivo em Campina Grande, Paraíba, terra da minha esposa).

    Foi um prazer imenso ler mais um texto seu, Anaximandro.

    Um forte abraço!

    ~ Camilo Jr.

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